segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Segredos de vida breve - ou - Vida de mãe no cárcere.

Fui presa injustamente aos vinte e três anos, grávida de duas semanas de um homem que guardava drogas embaixo do mesmo colchão velho em que me tinha com violência nas noites de bebedeira. Eu não posso dizer que não sabia. Sabia sim, mas era ele quem botava o de comer na mesa e eu nunca tive peito de negar. Ainda mais agora, com criança no bucho. Disseram-me cúmplice. Fui algemada sem resistir, embora chorasse muito. " Estou grávida, pelo amor de Deus não me batam" - disse eu. "Devia apanhar mais ainda por colocar mais uma criança no mundo, sua vagabunda" - respondeu a agente carcerária. Me calei. Ela estava certa. Eu não queria ter pegado barriga de novo, já tinha tirado dois naquele mesmo ano, eu tomei tudo que foi remédio pra tentar tirar. Mas a menina vingou, não quis sair do bucho de jeito nenhum, fui internada passei mal, sangrei. E ainda assim la ficou a bichinha, coitadinha. Ela já devia saber que sua companhia era o que ia me salvar da imensa solidão do primeiro ano e meio de gaiola.
Minha menina só me trouxe sorte. Por estar grávida, tive direito (é verdade, pela primeira vez na vida entendi o que era ter direito à algo) de ficar em uma prisão especial, um lugar agradável com camas limpas e espaço ao ar livre. Foram nove meses de paz. Tão boazinha minha neném. Quando me via entediada, dava chutezinhos, me causava um enjôo, uma dor qualquer que me lembrava que eu estava viva e de que era necessário estar viva. Mais por ela que por mim, é verdade, por ela eu tinha razão agora para ter vontade de continuar.
Nasceu dia 16 de dezembro de 1999. Sagitariana como minha mãe. Foi um parto tranquilo, não deixei ninguém me dar anestesia nem nada, queria sentir cada arrepio de dor que ela me causasse, a carne rasgando para ela sair. Mas a minha menina era tão boazinha que achou que de doída já bastava a minha vida e simplesmente nasceu como quem desliza em um escorregador, nasceu brincando, eu tive umas contrações, fui para o leito, veio a médica e a segurou numa manobra rápida, quase que a pequenina cai no chão de tão miúda. Chorou um chorinho manso, agudinho, e aquele choro foi mais que música. Aquele choro da minha filhinha me fez chorar de alegria também. Depois disso, eu sabia, teria apenas seis meses com ela, antes que fosse entregue a familiares ou adoção. A partir daquele instante, cada dia era um dia a menos, cada dia era uma chance única de amar. E nos tornamos tão cúmplices!Eu tinha tanto leite! Contei mil vezes a ela toda a história de como tínhamos ido parar lá na prisão, da sorte que ela tinha me trazido, do amor que tinha me ensinado. Havia uns livrinhos numa biblioteca que podíamos usar e todos os dias eu lia pra ela, sempre fui muito boa em leitura e escolhia para contar-lhe as historinhas mais bonitas. Histórias mais bonitas que a nossa, para que ela soubesse que apesar de a minha vida ter se guiado daquele modo torto, a dela poderia ser bem melhor. Eu desejava pra ela uma vida tão imensamente melhor!
Os meses passavam rápido demais, as horas eu contava, vigiava, querendo segurar os segundos, querendo que os relógios atrasassem, o tempo parasse, alguma lei mudasse e eu pudesse tê-la por mais tempo junto a mim. Me desesperava não saber se alguém de minha família poderia ficar com ela. No primeiro mês de vida perdeu o pai. Foi assassinado dentro de casa, a facadas, por um policial que ficou sem o pagamento. Graças a Deus, pensei, não estávamos lá. Senão também nós teríamos morrido, ela não ia nem ter tido o direito de viver. Que sorte minha menina me trouxe, foi Deus quem quis assim.
Já com dois meses de mãe e filha, eu ainda não tinha um nome para dar-lhe. Chamava-a de minha menina, minha neném, meu amor, meu amor. Pensava em Vitória, mas já conhecia duas bebês chamadas Vitória, filhas de colegas de cárcere. Pensava nuns nomes de artistas, de personagens de novela, mas nenhum parecia dar conta daquilo que era muito provavelmente a única coisa que eu poderia dar a ela em toda nossa breve vida juntas. Um dia, vi um filme estrangeiro e nos créditos finais achei o nome da minha rebenta: Linda.
Não havia nome melhor. "Linda, minha filha, é o que você é, o que espero de tua vida e de tua sorte". Registrei-a apenas Linda da Silva. O nome do pai não carecia. Também não batizei, porque queria que ela fosse livre para escolher sua religião, sei lá, as igrejas às vezes são cruéis com as pessoas. Não, a minha menina vai saber de si.
Quando ela estava com cinco meses de vida, nós duas somando um ano e dois meses de cárcere, decidiram que ela teria que ir para adoção, já que eu não tinha ninguém na família que pudesse ficar com ela. Minha irmã com seis em casa, meu irmão morando em Ilhéus, na Bahia. Minha mãe morava com minha irmã. Elas até tentaram, mas não puderam pegar por falta de condições, a assistente social foi lá para dar o atestado e quase que leva dois da penquinha da minha irmã embora. Uma miséria desgraçada, e eu fiquei sem a minha companheira. Sem o meu amor, sem sorte.

" Minha filha, já fazem seis meses que você nasceu. Hoje eles vêm te buscar. São oito e meia da manhã e dentro de meia hora a mamãe vai te colocar aquele vestidinho amarelo que você adora e vai dar você para a moça levar. Lembra aquela moça boazinha que de vez em quando te traz presente? Bem, você vai com ela. Eu vou colocar na mala a sua chupeta, seu mamá e a bonequinha de pano vai contigo. Eu vou ficar por aqui e esperar a morte chegar. Eu só existi enquanto estive contigo, meu amor. Apenas por ti eu vivi. Agora o ponteiro andou mais um pouco, falta menos. Deixa eu te cheirar, todas as dobrinhas, eu queria tanto guardar este cheiro num pano. Posso ficar com teu paninho? Obrigada meu amor, você sempre tão boazinha com a mamãe. Vou te cantar a sua canção pela última vez: Linda, te sinto mais bela... te fico na espera, me sinto tão só, mas o tempo que passa... - Desculpa se a mamãe perdeu o ritmo. É que eu estou engasgada. Não filhinha, não chora. Você vai ser adotada por uma família rica, vai ter a chance de estudar, de ter a vida que mamãe não teve. Vai ter um homem bom para ser feliz com ele, vai ter meus netos lindos e bons como você foi para mim. Mas você não vai se lembrar de mim, o que vai ser bom, para não sofrer. Mesmo porque, não precisa lembrar, não vai valer de nada. Assim que você se for a mamãe vai morrer, mas não se preocupe, eu não estou triste, estou agradecida. Eu só vivi por ti e para ti. Minha vida durou este ano e meio, e eu fui a pessoa mais feliz na Terra. Eu sim, fui feliz. Morro realizada por cada sorriso teu. A porta abriu, está na hora. Eu já comecei a sangrar meus últimos suspiros de vida. Não neném não chora. Cuidado com ela, cante para ela dona moça, leia uma historinha. Ela gosta de bichos, ela é uma menina muito boa, não entrega ela pra qualquer um, viu? Viu dona moça, ei! Ei! Eu estou falando com você, pelo amor de Deus eu imploro, me deixa ficar com ela, deixa... Não dá ela pra ninguém ruim, por favor, deixa ela com uma familia boa! Filha, filha! Linda, eu só vivi por ti. Você me salvou meu amor! Eu te amo, não chora, eu te amo demais. Moça, o nome dela é Linda da Silva, leva o registro dela, eu fiz tudo certinho, leva. Leva meu coração, atravessa a grade e leva. Filha, você vai conhecer o mundo lá fora, o mundo é uma coisa linda como você. O mundo vai ser bom contigo, meu amor. "

A grade fechou. Que luz é aquela? É Deus, veio com seus anjos de luz! Me leva, Senhor, me leva. Que ao menos esta dor passe, me leva pra morar no céu. Me leva que eu vivi na Terra por um ano e meio e hoje eu quero morrer. Traz na tua bondade o perdão pelos males que devo ter causado, mesmo queredo sempre seguir o caminho do bem. Me carrega logo, me tira deste corpo pesado onde bate um coração e onde um ventre um dia gerou a coisa mais bonita que o senhor colocou no mundo.
Me leva, Pai. Já é hora. Eu já fui feliz.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Previsão do Fim de Ano.


A chuva - sim - vai cair e molhar a todos. Primeiro, por privilégio adquirido, uns passarinhos de hábitos noturnos, uma torre de aeroporto, um prédio de vinte andares. Depois uma árvore seca e alta, seguida por uma aconchegante e gorda mangueira escorrendo ao caule, aos frutos, morcegos, moscas, sapos, grama – até a terra.
E vai molhar ainda neste entremeio os cabelos das ruivas, uma aba de chapéu. Desenhar auréolas num rio, entrar pelos bueiros, os vãos, as vidraças com buraco. Vai parar sobre uma telha e infiltrar-se vagarosa e definitivamente. Vai molhar uma roupa seca no varal e arrancar um suspiro cansado de alguém que não chegou a tempo, vai entrar pelo rombo causado pelo fogo de quinta-feira, embora vá também ajudar a apagar outros incêndios. Vai encher as piscinas de limo, causar uma dengue no abandono do dia seguinte, deixar um par único de sapatos cheirando a seco-à-sombra pela semana toda, ainda que permanecendo, na verdade (isto é, aos pés), úmidos.
A chuva vai encher um poço, vai doar sangue às flores e às também e não menos importantes hortaliças e frutíferas, todas absolutamente necessárias em igual proporção. Vai apagar uma fogueira, confirmando a profecia ritual. Não vai apagar outra fogueira, repetindo o feito. E depois de tudo isso, vai embora sem previsão de volta, deixando todo o entorno transformado, a textura do chão diferente, a cor das coisas escuras mais escuras, a das claras transparente.
A chuva vai cair e vai derrubar consigo barrancas, vai levar o ano que finda. Vai lavar minha alma suja pela poeira de tudo o que eu planejava e não cumpri. Fica pra conta do ano que vem. A chuva vai cair e molhar a todos nós, que vindos do pó à lama tornaremos, que vindos da água aos céus ascenderemos, na barra da saia de Ewá em forma de vapor.
A chuva vai cair e molhar todos eles e todos nós. Isso mesmo com céu aberto se pode ver, mesmo sem sombra de nuvem. E tudo isso porque o ano finda, a televisão anunciou.
O ano vai acabar e a chuva vai cair. Certo. Mas não vai ser hoje.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Nine Out of Ten.

Veja meu amigo, o desespero em que ela me põe. O que foi que eu fiz? A esta altura do campeonato, fui cair nas unhas desta tigresa, como um anjo inocente que ao tentar breve vôo se lança ao fogo infernal, à prisão de uma paixão insana. Aquela vagabunda, piranha. A loira maldita é gostosa como o quê. A gatinha neném é rainha de tudo. E eu, vagabundo cascudo, entrei pelo cano com essa mulher.
Das suas pernas eu tirei a coragem para abandonar a casa e o casamento. De seus seios eu tirei alimento pro corpo e pra alma, me embriaguei do leite ralo de uma ilusão. Carimbei os papéis de uma jura de amor eterno, que fui eu mesmo quem jurou pensando que a jura era dela. Eu assinei foi um atestado de idiota, eu fiz de tudo por essa vaca e, aliás, tenho feito. E não consigo deixar de fazer! Acho que estou louco! Não consigo deixar de fazer, porque eu a quero de qualquer maneira, eu a quero sem medo e sem pena, eu a quero ao meu lado, eu quero vê-la de quatro. E por trás. Afogada por mim. E o pior de tudo isso é saber que a imbecil me ama. Mas é filha da puta tão burra que nem disso se dá conta... E agora olha ela aí, entregando pra outro o que é meu, saracoteando com minha dor, se exibindo, me fazendo ciúme, um ciúme doido e doído, um ciúme de matar. Olha ela aí leiloando o que me prometeu por alto custo. E um custo que venho pagando a pesadas prestações, uma coisa de cada vez. A casa, o casamento, a moral. Logo eu, pra quem mulher não falta, logo eu, que sou pica das galáxias, um amante das mulheres, de verdade, um amante das mulheres. Cada uma eu amo e amei sempre com gosto, embora poucas vezes tenha me largado à deriva dos desejos femininos, dos perigos que eu sempre julguei conhecer decorado e salteado, e agora – surprise, baby! – eu estou fodido.
Eu vou desistir desta merda, eu vou largar de mão. Eu juro. E ela que vá tomar no cu a piranha, ela que vá pro raio que a parta. Ela que se lasque, porque eu vou cair de pau, eu vou à forra, vou comer a metade do Rio de Janeiro que ainda não comi e também não terei mais coração. Eu juro, não terei mais coração. Deu pra mim de amor, deu pra mim de mulher. Não, meu caro, eu não me transviei - você sabe que isso é impossível. Mas porra, elas estão todas loucas e eu já estou de saco cheio, quer saber? Com sua licença vou citar Caetano, I`m alive and vivo, muito vivo. I`m in the age of gold, baby. Nove em cada dez mulheres me fazem ficar excitado só de olhar. E não vai ser esta, não vai ser esta vaca quem vai me fazer penar, não vai. Agora é hora, I`m free as a bird baby, I`m lost. I`m gonna hit the road and won`t come back no more. Rock it, baby : A gata perdeu e quem ganha é a população feminina do centro ao alto Leblon. E antes que as praias desapareçam na subida da maré, eu vou humilhá-la pelas redondezas, vou tirá-la de mim. Eu não sou de ameaçar. Eu vou lá e faço. Eu juro.
E eu posso até morrer de dor, que não estou nem aí. Que mais me resta além da liberdade?
Que mais me resta a não ser rezar para que ela mude, para que se manque... Mas é tão imbecil minha amada, é tão abusada... Só pode ser coisa da idade. Que mais me resta além de esperar impacientemente que ela me mande uma mensagem de texto agora confessando que me ama e que será minha escrava eternamente, que sucumbirá a todos os meus desejos.
Que será minha flor, meu bebê. Que dirá que sim.
Nine out of ten love stories make me cry. É meu chapa, está provado e comprovado. I`m alive and vivo, muito vivo.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Óleo e Água

Somos os dois
Feito óleo e água
Nada mistura
Nada estraga.
Bem pra água pura
Ou óleo de oliva
Haja secura,
Haja saliva!
Gotas douradas
Fundo transparente
É tão bonito...
Mas ninguém entende
Como pode ser?
Aquoso oleoso
Um duo imiscível
A dor e o gozo
E o irresistível
Que há em fazer
O dito impossível
Acontecer.

domingo, 4 de dezembro de 2011

"Doutor, eu não me engano..."

Quatro de dezembro, Rio de Janeiro. Dia de Iansã e Santa Bárbara, dia da decisão do campeonato brasileiro de futebol de 2011. Na Cidade Maravilhosa desde quarta-feira todo mundo já parece estar em clima de final, os bares perfeitamente cheios, as apostas e provocações, as camisetas dos times levadas nos ombros por já estarem molhadas de suor, fazendo com que desfilem os morenos pelas ruas pra lá e pra cá, pele à mostra, tirando o sossego da gente. Futebol, fim de ano e verão. (Um clima bom da moléstia...) Tudo corria para ser mais uma final memorável, o Vasco concorrendo ao título após uma campanha de sucesso como não havia há tempos no time. Mas ficou ainda mais memorável porque na manhã de hoje, antes mesmo de serem iniciados os preparativos do almoço de domingo, veio pelos jornais e canais de TV a triste notícia da morte de Sócrates, o Doutor. Bradavam a morte de um craque, um gênio do futebol brasileiro, e - até eu que não entendo de futebol sei disso - um dos últimos representantes de uma era de ouro no esporte mais aclamado do Brasil. Magrelo, bêbado, chegado à samba e à comunismo. Um herói brasileiro típico, Macunaíma, torto. Destes que a gente gosta de cantar. Desencarnou nesta madrugada padecido de uma cirrose. Antes do sol chegar foi carregado numa cerimônia festiva pelos braços de Iansã, que além de ser a dona dos mortos é também dona do vento e dos lampejos, tempo e idéia, os mesmos impulsos de criatividade e genialidade que fizeram deste homem um doutor aos olhos de um país que tem no futebol talvez o mais importante símbolo nacional. Coladinho ao samba, que no fim é tudo fruto da mesma coisa, da paixão e da raça, do suor. Mas é dia de final, e a tristeza só aumenta a gana. No Rio tem Flamengo e Vasco, em Sampa Corinthians e Palmeiras. Só clássico. Dizem que o homem era corinthiano. Gaviões, Camisa 12, Pavilhão. As torcidas pintam o estádio de preto e branco, representando a dualidade das coisas, os momentos bons e ruins, a vida e a morte. Porque quem tem veia de maloqueiro sofredor bem sabe que vida é assim, que hoje tem, amanhã não (tá ligado?). O bagulho é doido e o processo é lento. Um minuto de silêncio em nome de Sócrates, e há milhares de punhos fechados, erguidos aos céus em sua homenagem. Vai com fé, Sócrates, que hoje vamos todos beber em teu nome. Que hoje o Coringão não perdoa, vai ter porco assado e torresmo de petisco, no caso de o Mengão não preparar o bacalhau. E nada de gol. As bolas ocas no placar parecem dizer que ninguém tem o direito de manchar o nome e a glória daquele que mandava até de calcanhar. Em torneio de pontos, mais valia um zero a zero. Nenhum gol feioso ou meramente técnico valeria a pena, deixa assim. Deixa no zero a zero que com Sócrates já ficou combinado e é na base do tudo ou nada. Termina a partida no Rio e em Sampa já deliram os gaviões. Frenéticos por uma vitória sem gols, apenas mais uma pra confirmar a controvérsia das coisas. É o preto e branco na avenida, com pancadaria, cartão vermelho e o cacete, do jeito que os corinthianos gostam, muita gritaria e muita emoção. E eu achei lindo e engraçado, ao ouvir os fogos e o auê da rua, aquele grito que subiu com o vento de Oyá e entrou pela janela, pois me pareceu como um sopro em coro, uma só voz independente de times, de estados ou partidos. Parecia uma só voz macia a cantar aquela velha marchinha de carnaval que sem querer prestava a sua homenagem singela: "Doutor, eu não me engano... O coração é corinthiano... "

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Acalanto ( ou - "A Mulher de Cada Porto")

Permita-me amor, roubar de ti apenas a tristeza dos olhos. Usar e abusar dos jargões, que cantam que beberei tuas lágrimas, que serei teu raio de sol, que terás em mim teu porto. Permita-me romper teu peito num beijo, adentrá-lo com ternura e lá dentro fazer morada. Não, meu bem. Eu não aguento te ver sofrendo assim. Acredita quando te digo que de nada vale se ferir tanto, que a vida é dura mas é tudo que temos. É tudo e vale a pena, ora se vale. Eu te empresto se precisar de uma gota ou rio de fé, de esperança. Um pouco de misticismo e crença, já que eu tenho de sobra, posso te dar. Já que rezo todos os meus dias pelos seus, para que sejam mais amenos e que não seja nunca nosso amor um fardo pesado que te una à Terra, mas sim aquilo que te eleve aos Céus. Deixe-me ser teu anjo! Ouve o que dizem aqueles dois carinhosos amigos, aquele amável casal de sabiás, caso não queira me ouvir. Todos nós, eles e eu, só trinamos assovios de que tudo - com boa dose de carinho - melhora. Fica assim não, muda de atitude em relação à si mesmo antes do mundo. Surpreenda este mundo. Recorra a mim se for preciso um pouco de coragem, que eu te mostro quem é aquele que me cativa e que você não vê no espelho. Aquele para quem você insiste em negar os olhos de afeto. Toma as rédeas deste cavalo selvagem em disparada que é a vida, que corre tempo desembestado mas nos dá o direito de gozar do imenso prazer do vento nas crinas, do ar enchendo os pulmões, dos cheiros esverdeados das matas. Ainda que nos lasque o casco e sejam ponteaguadas as pedras da estrada. Que às vezes canse, ou seja vital pedir àgua. E se for preciso, recorra a mim, coração! Que eu te ensino como se monta rédea, como se laça bicho e qual é o verdadeiro perfume e gosto de um cavalo suado. Eu te dou de beber. Descanso uns instantes e te espero. Até bebo contigo. Vem cá meu menino, se entrega ao meu colo de mulher. Ou se for preciso, recorra a mim para que eu te doe um pouco de infância que ainda me resta, sorrisos ingênuos de quem não entende e por isso se diverte. Mas sem ignorar. Mas sem fingir. Tem pressa não, nem medo. Eu estou aqui.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Delírio Gitano

Deixe-me assim, que eu me levo pra longe. Eu possuo o terrível e imutável hábito dos ciganos, de viver nas estradas, de paixões incendiárias e de, por amor, roubar criancinhas. De chafurdar como os porcos na lama, de engolir diamantes e vender falsas pedras preciosas. Possuo o hábito intenso e efêmero das fogueiras. Deixe-me assim para que eu esqueça, para que meus olhos não contenham mais os seus e seja em breve outro o cheiro que me habite. E ainda que retorne seu cheiro depois de tanto tempo, e re-grude em mim, seja apenas um cheiro passageiro de flor, ou de amor passado, ou de desejo inoculado. Seja um cheiro de lar, que mesmo os ciganos cultivam a cada acampamento. Sempre haverá este cheiro de casa, este cheiro de acalanto, do qual já fiz e farei a minha esteira e o meu lençol. E do qual para sempre precisarei sentir saudade, invenção gitana para milongar beira-fogo. Desprendo-me assim porque se faz necessária a solidão encorajadora das estradas. Nesta noite eu tive um sonho, deslizava por pedras escorregadias, ardósias, me arrastava por elas de barrigada, de quatro, ralava os joelhos, mas não me feria. Divertia-me, ao contrário, dos arrepios do medo e da escuridão chuvosa que tanto temo. Deixe-me assim, que eu me levo pra longe. Eu possuo o terrível e imutável hábito dos ciganos, de vestir-me de luxo e sujeira, de rodar a saia vermelha. De rosas, de medalhas. Eu leio nas mãos de outros o destino que me carregará para a próxima parada, menos importante onde e mais importante como. E quando, que é sempre o dia em que o solo se esgota, a colheita termina, ou que não restam mais ouvidos para a misteriosa música dos bandos de amantes da lua cheia. Eu vou junto do ritmo lunar transmutar-me em outra, mudar de nome e de cabelos, contar outra história sobre mim e sobre todos os mil homens que amei até agora. Deixe-me assim, eternamente um vir a ser. Pois o que sou hoje é vento e fogo, semente e terra, que amanhã - disse-me o oráculo do tarôt: serão flores e violões. Os mais exóticos frutos tropicais.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Útil Paisagem

Embora do lado de dentro haja carvão, escombros e esperança, do lado de fora, com seios de Pão-de-Açúcar há uma mulher deitada. Paciente, espera uma criança. Tudo aquilo que o fogo lambeu será refeito: tábuas, máquinas,acúmulo de papéis. E ainda ali fora restará a mulher deitada, cabeça de lado, gerando sempre daquela barriga uma beleza de paisagem. Se por dentro da casa tudo ruiu em aparência, lá fora nada vai se modificar. A natureza é maior que os homens, ela paciente me diz que enquanto centenas de casas ruirem, vidas passarem pela Terra, famílias forem criadas e aniquiladas, pássaros forem extintos, mil Natais, mil festas de Ano-Novo, mil Páscoas e Carnavais passarem, ainda estará aqui. A natureza ensina que a paciência é irmã da beleza. Veja aquela mulher ali deitada sobre a Guanabara, o rosto de braço-de-terra, os seios de Pão-de-Açúcar. Gera a barriguda a beleza da paisagem deitada e descansada, assim como do outro lado também o faz o Gigante Adormecido. Tão calmos e pacientes em seu sono mineral. Tão belos. Viram há muito aparecerm os prédios, bondinhos, favelas. Foram violados por estradas, sofreram. A mulher hoje deita numa àgua suja e podre, que já foi a moradia mais azul de Iemanjá, mas ainda assim, assitem à tudo impassíveis e descansados, como quem em sua sabedoria apenas espera a hora de ver tudo mudar, numa onda imensa que vai vir e transformar as coisas repentina ou vagarosamente, onda do mar ou de consciência. Paciência, porque tudo isso passa num raio de segundo para a natureza. Nós passamos em menos de um raio de segundo. Paciência e sangue, e beleza, e alegria porque um dia se abre os olhos e se está do outro lado da natureza, olhando tudo de cima, ou do fundo das àguas da Guanabara. Paciência e força. E coragem. Para dormir o sono pesado e inabalável das pedras. Para acordar de dentro para fora para a beleza da útil paisagem.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Pitiatismos de paixão

Sorrindo ainda macio
Com teu beijo em meu olhar
Subo o primeiro degrau,
Fecho o portão devagar
Nem bem me somes da vista
E a saudade desata queimar!
Muitas vezes foram assim
Entretanto fazia um tempo
Pois já custa saber de mim!
E agora este atrevimento:
Antes que eu virasse a chave
Entrasse em casa aos suspiros,
Alguns segundos antes disso
Já sonhava meu corpo contigo!
Como pode uma paixão
Vir assim, abestalhada
Sem contexto ou condição
No coração montar guarda
E ir gostando, ir ficando
Até por fim se aconchegar
Ao ponto da última noticia
(Que nem eu pude acreditar)
Diz-que agora só sei sorrir
Na hora de você chegar...

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Pássaro Noturno

Cinco e vinte da manhã. Já devo estar acordada rolando na cama há uma hora. Me despertou primeiro a boca seca, demorei a levantar, bebi dois copos de àgua. Ao voltar à cama um canto rompe o silêncio profundo, é um pássaro da noite. E o seu canto persiste, alto e agudo como o apito de um guarda, como um eco de ribanceira. Há ainda um ruído que vem da cidade, do centro. Mais parece o mar, engraçado. Lembro-me dos bons tempos de beira-mar, que quando revolto bradava noite adentro e também costumava me levar o sono. É alta madrugada, dorme o Rio de Janeiro em seu falso sono de paz. É alta madrugada. Respiram melhor os bêbados, se aconchegam os casais nos lençóis, chora uma criança já desperta, esperam acordados nas camas os velhos, que se deitam cedo e acordam mais cedo ainda por não terem mais paciência nem para viver, nem para dormir. Tenho medo deste momento da velhice, o momento de perder o sono, como agora. Contudo hoje não sinto medo, porque estou acompanhada deste papel que deve rolar pra lá e pra cá por uns dias, me lembrando que enquanto persistir o desejo de escrever, eu também existirei. Este papel é a prova de minha existência na madrugada, de que ainda que durma, eu vivo, e que ainda que perca o sono, tenho algo para fazer e isso me socorre.
Agora já se anuncia com um fraco canto um pardal dos primeiros raios de sol. Logo serão muitos, cantam fraco porque sempre em bando, são os portadores da voz da manhã. Me arrepia pensar no dia que virá.
"Sol, eu que sou devota de ti e de tuas flores, te peço, não venha hoje. Deixe que a noite imensa me abrace por mais vinte e quatro horas, permita que eu apenas adormeça e sonhe com coisas boas..."
Pedidos inúteis. O dia já começa a raiar, os pardais somam-se aos primeiros riscos de luz no horizonte. Vem aquele frio da manhã e agora é tarde para voltar a dormir. De tão cedo, é tarde - oxímoro estúpido. Apitou uma fábrica, passaram um carro e uma moto. O guarda da rua apita também o início da partida, juíz do dia.
Será que já posso fumar um cigarro? Terei coragem de largar estas folhas e fazer um café com gosto de manhã? Despir-me da noite, da camisola, das ramelas, e encarar mais um dia que passará à tôa, uma quarta-feira que nem é começo nem fim, assim como a madrugada, que não é começo nem fim e por isso é apenas um não-lugar onde nada deve acontecer, mas acontece.
Acontece que eu perdi o sono porque me vêm imagens, lembranças e os ruídos são mais meus que da cidade ou dos pássaros. Dia! Pela última vez se arrependa de pintar o céu eu te peço, não venha! Guarda teu ímpeto de colorir e permite que fique a negra noite por mais vinte e quatro horas! Ou, se inevitavelmente tiver que amanhecer, que eu adormeça por mais alguns minutos, a tempo de tirar de mim a madrugada.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Sete Cordas

Não tenho nenhuma intenção (ou medo) de parecer piegas ou triste ao relembrar aqui pessoas que já fizeram sua passagem desta Terra. Justamente porque falo de emoções lindas, boas e que renderam à minha vida muita poesia.
Um amigo me lembrou que hoje é a data de aniversário de Raphael Rabello, este grande menino que se ainda estivesse por aqui, faria hoje 49 anos. Minha experiência com a obra de Raphael é ainda crescente, cada vez conheço e gosto evidentemente mais de suas composições e também cada vez mais adquiro competência para compreender seu violão. Quero dizer, ganho ouvidos. Competência mesmo, não possuo qualquer.
É bom poder relembrar esta data feliz de quando o Brasil ganhou Raphael, que nasceu sortudo numa família musical e grande, de personalidades marcantes como a sua e de onde retirou sua coragem e dedicação para tornar-se um de nossos maiores violonistas de todos os tempos. Quando a família é grande e unida, parece que a força se multiplica.
E foi sobre família, amor e aprendizado, que me lembrei hoje quando dei conta de que Raphael aniversariaria. Eu ainda era bem menina quando ele partiu. Mas me lembro perfeitamente do dia, da hora do almoço, quando pela primeira vez em toda a minha vida até então, eu ví o meu pai - amante de música e em especial de violão - chorar em frente à televisão.
Eu me lembro que não entendi nada, achei que ele estava brincando e tentei animá-lo com cócegas. Não me lembro de tê-lo visto chorar antes disso.
Mas como ele não parava e estava muito emocionado, sentei ao seu lado no sofá e perguntei:

- "Pai, por que você está chorando ? " - Já eu começando a chorar também, louca por ele que sou desde sempre.

Só sei que o ouvi responder que naquele dia a gente tinha perdido o maior violonista de todos, o que ele mais admirava. Tinha comprado um CD novo do tal rapaz, e colocou para tocar bem alto no carro, enquanto me levava para a escola:

- "Ele se chamava Raphael Rabello, filha. É este aqui da foto".

Depois disso ví muitas vezes meu pai chorar, talvez tenha sido o dia em que descobri que ele também podia ficar triste. Acho até que quanto mais ele amadurece, melhor fica do coração, porque se emociona e chora hoje com liberdade, ainda mais pelas coisas felizes. E daquele dia, só me restou pra sempre a impressão de que o amor de meu pai por aquele rapaz era uma coisa meio paternal, como por mim. Ele botava muita fé no menino, sentiu sua perda. Volta e meia, quando hoje eu pego seu carro para rodar pela cidade, é a Raphael que gosto de ouvir também, como uma tradição emotiva que se cria.

Que bom que Raphael nasceu, viveu e existe. Um salve a este mestre da emoção.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Seu Nelson

A última vez que coloquei um texto de aniversário aqui no blog foi dia 21 de Setembro, aniversário de minha mãe (O texto "Um beijo, de sua Curuminha"). Hoje volto para fazer novamente umas linhas de aniversário, de lembrança, já que assim como estava longe de minha mãe no dia de suas primaveras, estou longe hoje deste que de algum modo é como se fosse parte da família, é um pouco um pai vagabundo e vadio, mas que ainda assim nunca me abandona. Aquele imenso coração, o tal do Nelson Cavaquinho.O mínimo que poderia ser dito sobre ele é que foi e será um de nossos maiores, sempre. Mas não tenho a intenção de discutir aqui sua obra, pelo contrário, eu só queria poder dar-lhe um grande abraço e dizer muito, muito obrigada seu Nelson...
Assim como quando do aniversário de minha mãe eu não podia, hoje também não posso concretizar este abraço. Mas apesar de seu corpo ter-se ido deste mundo (a casca completaria 100 anos hoje, se ainda encarnada), Nelson está perto, permanece bem aqui, cantando desde hoje cedo para mim. Tenho a sensação de que quem grava um disco não morre, porque morrer é parar a conversa, é se retirar da mesa. E ele não se retira, nem vai se retirar jamais de nossos ouvidos, lábios e palmas de mão... E além disso sempre, sempre e inevitavelmente será rememorado nas rodas boêmias e noitadas cariocas, especialmente se elas acontecerem perto do centro, da praça Tiradentes (mas também se elas tomarem forma pelas adjacências da Glória, Largo do Machado ou Copacabana, ou onde quer que seja).
Ainda que estando longe fisicamente deste meu pai adotivo ao contrário - adotado ele por mim, ao invés do inverso - ou como diria o meu querido amigo Flora, deste cara que é gente como a gente, da "sargeta e da lama" (na verdade Flora completaria com um " para caraaaalho, gente para caraaaalho"), eu quero poder lhe enviar onde estiver um brinde, Seu Nelson Cavaquinho.
Infelizmente só posso lhe mandar estas flores em palavra e o meu carinho postumamente. Mas pensando bem, como não te conheci enquanto passeavas encarnado por aqui, para mim você não se chama "saudade", se chama realidade. Eu já te conheci assim e este que eu conheci não morre. E não apenas não morre porque os mestres são eternos e seus ensinamentos perpetuam através das gerações, mas porque o som que é lançado ao vento, a música, ela nunca para de ressoar no mundo. E a cada vez que eu te ouvir a cantar aquele "laraiá" lindo de "Minha Festa", ou quando imaginar você no meio do picadeiro com a cara pintada todas as vezes em que ouvir "Palhaço", lá estará você. Vivo como sempre, em minha emoção e afeto.
Um grande beijo Seu Nelson. Minha admiração sincera e profundo repeito. Que toda esta energia que emana de tudo o que o senhor fez enquanto estava preso na casca, por aqui na Terra, possa continuar a nos ensinar como é que se faz para viver com mais liberdade e menos apego. Possa nos ensinar a ser bem mais gente.
Muito obrigada por tudo.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Dona Luzia

"Iara? Do teu nome não me esqueço, que bom. Nome de minha irmã, mas ela é doente, coitada, tem problema de cabeça."

Foi assim que conheci dona Luzia que, entre outras coisas, é a responsável pelas comidas mais saborosas, bem temperadas e calóricas do mundo, as quais temos o prazer de almoçar três vezes por semana aqui no escritório. Vem toda segunda, quarta e sexta lá da Rocinha até o que considera o fino bairro de Santa Teresa. Esta esbórnia de bairro onde quando não se morre a bonde, se é assaltado à pé, e onde morador é tratado como adereço exótico da miséria para turista ver. Mas falava de dona Luzia. Um metro e cinquenta de puro dendê, as argolas douradas que quando ela está namoradeira recebem uns penduricalhos de coraçõezinhos de camelô. O cabelo grosso e de um preto impecável com corte à moda antiga, curto e com uma densa franja lhe dá um ar coquete. É bonita que só ela. Aos sessenta e quatro anos, vai sempre que pode ao forró, ama dançar e fica cantarolando as músicas que eu estudo enquanto escrevo orçamentos em alto e bom som, sempre me pedindo com timidez pra botar Elis Regina. Gosta dos boleros todos que eu amo, mas discordamos às vezes quando ela acha que a voz da filha da Elis Regina é igualzinha à dela. Hoje a dobrei dizendo que não me transmitia nem um terço da emoção que a Elis conseguia transmitir.

" Ah, Iara. Isso é mesmo, é verdade."

Me perguntou umas coisas pela manhã às quais eu respondi desatenta, como de costume. Lembro de ter ouvido algo sobre carne moída. Quando saiu do forno aquela beleza de iguaria, me olhou com um sorrisão, embora sempre tente esconder os dentes:

" Iara, está pronto, vamos comer?"

Quando reparei, o prato nadava no molho de tomate.

"Sou alérgica, dona Luzia...não posso com tomate."

"Eu sou uma grossa estúpida em soltar estas palavras assim", pensei dois segundos depois, mas elas já haviam fugido da minha boca. Então em troca, para piorar minha estupidez, vem a dona Luzia com aquele afago:

" O que? Eu te faço esta comida com tanto carinho e você me diz que não vai comer, Iara? Eu te perguntei de manhã se você queria outra coisa e você nem aí, ficou só ouvindo a Elis Regina. Agora vai comer sim, ora se vai. E vai comer porque não vai fazer mal. Feito com amor não faz mal!"

Sábias palavras, minha cara dona Luzia. Muito obrigada. O prato estava - como sempre - delicioso, e eu - como sempre - antes mesmo do nosso cafézinho com cigarro já estava perdidamente apaixonada pela senhora, gente tão gente mesmo, a vera.
O tal do prato me fez foi um bem danado. Não há ressaca que sobreviva à um pouco de gordura, dois litros de àgua boa e uma bela dose de amor sincero.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Três Marias

Para Marina, Maria e Dindinha.

Três irmãs, três Marias
O laço de sangue, o fogo de chão
Barra mansa donde a curva escoa
Depois do rio d’água turva,
Se encaverna uma fonte boa!

Na sesmaria, todas as três
O passo manso, a reza firme
Fazem amor, farinha e doce
Entreolhando silêncios, beira-fogão

Três estrelas, penca de jóias
As mãozinhas dadas na constelação
Tempo fica e eis que anuncia a hora
De hora, em hora - um bravo galo capão

Três irmãs, quais as três Marias
Que a família é o presente dos céus
Olhem pelos teus, guardem que um dia
Também eles sumirão de vista sem acenar adeus

Como a quente labareda que sem toco esfria
E a tarde mergulha o dia para o escuro fundo das serras
Vivem brilhantes faíscas, estas três Marias
Três flores de amores, três frutos da terra.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Polução Noturna

Para Quintana


Em meus sonhos estás nua
Branca, alta, enluarada
Recém-chegada da rua
Entre os dentes, rosa alva

E esta rosa, cega a Lua
Com seu brilho de marfim
Só não cega a noite escura
E os olhos que tens para mim

Em meus sonhos, nuca exposta
Os teus lábios sangram fél
Tudo o que te faço gostas
Infernizas o teu réu

E em teu feitio esquálido
Eu padeço de loucura
Acordo sempre, membro inchado
Dilacerado nesta amargura!

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Chuva na estrada.

Sinais pela pele, temporárias constelações...
Gotas do outro lado da janela fazendo sombra.
Petit-pois, lantejoulas,
Irregulares padrões, respingos de tinta :

Lá fora chovia e a luz contrastava, salpicando todo o meu corpo.
Virei onça pintada, galinha d'angola, sombra de mola, bola de gude.
- Pedrinha redonda que atinge o açude e se envolve de auréolas -

Colar de contas,
Pérolas falsas,
Pela vidraça o choro da Lua
Água benta atirada,
Voz comovida que embola,

Sardas.

domingo, 9 de outubro de 2011

Uma canção para Luisa

Luisa, quem me autoriza
A te escrever uma canção?
Se já és tu conta precisa
A melodia da perfeição
Me diz como é que se harmoniza
Um poeminha para você...
Que foi educada sempre nos Tons
Do tanto amor e do sofrer
Eu queria sim, Luisa
Num belo dia quem sabe ser
Aquele que se exorcisa
À guisa de seu bem-querer
Mas diz quem é que me autoriza
A te escrever uma canção
Aqui calado, ouvindo a brisa
"Vem cá Luisa, me dá tua mão..."

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Tentativa frustrada.

Eu vim aqui só pra te negar
E te pedir pra me deixar
Não mais sucumbir ao teu amor
Tirar de teu beijo meu sabor.

Eu vim dizer: não quero mais!
Estes encontros viscerais
De nossos corpos, ardente chama
Tirar meu cheiro de tua cama.

Eu hoje vim de vez por toda
Te abandonar a bancarrota
Do bem-querer que em mim se fez
Tirar minha cor de sua tez.

E agora sim, de sí despida
Hei de ficar feliz da vida
Sem gosto, aroma ou colorido
Tirar meu corpo deste vestido.

Te fazendo vingança uma última vez
Mostrar todo o bem que a mim você fez
Mas que traiçoeiro o gozo do perdão!
Negou-me tirar você do coração.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Um beijo, de tua curuminha.

Feliz aniversário, meu amor. Quisera eu te dizer quanta saudade sinto, destes dias em que ainda tua menina, te acordaria com uma flor rosada de nosso jardim, e te daria mil beijos dizendo que és a melhor do mundo e a que eu sempre quis. Sempre celebramos no teu aniversário além de tuas primaveras, o início da primavera brasileira de todo ano e por isso sempre teimei que a estação mudava no dia 21 e não no dia seguinte, quando oficialmente é apontada nas folhinhas de calendário.
Se sempre me soubeste teimosa, por quê me me deixaste desde tão cedo fazer tudo aquilo que me vinha à telha? Por quê me deixaste te abandonar tão cedo, me desvencilhar de ti, sair arrogante de salto alto e maquiada, dentro de teu vestido? Por quê me deixaste ir e me cantaste ainda menina que fui feita para o mundo e não para ti?
Por quê quando me pariste menina - tu e eu - enterraste meu umbigo ao pé da roseira mais bonita da fazenda, para que eu crescesse poeta? E por quê mais tarde, inda nos meus primeiros meses de existência quando eu sufocava por um edema de glote, arrancaste com as mãos o pé de dama-da-noite que causou minha quase-morte? Por quê não me deixaste partir de todo antes que eu me apartasse de ti?
Por quê me embalaste ao som do Chico Buarque, tornando-me assim para sempre a Noiva da Cidade, transparente e distraída, ladra do sono teu e do de outra gente?
Por tudo isso não te perdôo e não haverás jamais de me perdoar. Pelo que fizemos de nossas vidas, desde que nos separamos. São tantos os anos levados pelas estradas que jamais quisesse que eu tomasse, mas ainda assim me deixaste. Por amor e por ódio, por raiva de meu temperamento ao mesmo tempo tão parecido e diverso do teu. Por amor e ódio nos batemos, uma única vez, lembra? Me bateste na face e eu com petulância lhe ofereci a outra. Assim te apunhalei, e me apunhalaste, mas sempre pela face e não pelas costas.
Como é vingativo este amor, como é imenso. Como acordei hoje pensando em tua primavera e na vontade de tornar a ser aquela pequena que imaginaria te acordar aos beijos, quando na verdade muito antes, ainda de madrugada, já terias acordado e estado em meu quarto para ver se eu estava coberta e rezaria por mim pensando que era a minha existência teu maior presente de aniversário.
Não nos enganamos, nem tu nem eu.
No dia de sua primavera, meu amor, me perdôa. Ao menos hoje quando as flores nascem, ajuda a brotar em teu peito donde brotava o leite, o perdão por eu ter tantas vezes estragado teus planos, arrasado teus dias, desfeito tuas promessas e as minhas. Ao menos hoje, deixa eu voltar no tempo e te dar um beijo em flor, ainda que esta flor seja uma maria-sem-vergonha, ou como a gente costumava chamar as kalanchoes, uma maria-chiquinha. Eu queria te dar a orquídea mais rara e branca, que ainda não possuis. Eu queria te dar tudo aquilo que plantastes para mim e não vingou. Eu queria voltar ao teu ventre e renascer contigo uma nova filha e uma nova mãe. Quem sabe duas melhores. Quem sabe eu nascessse menino, ou talvez você não enterrasse meu umbigo ao pé de uma roseira e sim numa cova rasa, com desleixo. Quem sabe eu não levasse comigo sua inocência, e não te abandonasse. Mas isso são mistérios, são devaneios ansiosos, são invernos. Hoje é tua primavera, meu amor. Hoje todas as flores chegaram com a natureza que tanto amas, só para enfeitar a tua existência.Eu te encomendei uma primavera. E se eu pudesse, ainda que fosse só por hoje, eu te faria muito feliz.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

No Quilo

Entrei no primeiro restaurante a quilo que me apareceu, a pressão já baixava tamanha era a fome ao meio-deia e meio. Ainda estranhei - confesso - o baixo valor da comida que estava bonita e apetitosa, exposta num salão antigo, com lustres garbosos e mesas com pés de madeira entalhada.Sentei-me sozinha em uma destas grandes mesas, e alguns minutos depois chega uma senhorinha aparentando talvez uns setenta anos ou mais, mas muito arrumada e perfumosa:

- Posso me sentar?
- Claro, fique a vontade.

Sentou-se e começou a comer sem dizer mais palavra. Eu, que vinha de uma caminhada desde a Rua do Ouvidor, (estávamos na Cinelândia) por diversos locais onde procurava emprego, meio animada, meio preocupada, meio curiosa, pensava: "Quem será esta senhora? Como é estranho isso de comer ao lado de um desconhecido, o sagrado momento da refeição sendo partilhado de maneira tão impessoal. As pessoas deveriam conversar mais, vai saber, ela pode ser a dona de uma livraria que justamente estava precisando de alguém como eu para trabalhar, e estamos aqui, caladas, quando poderiamos estar nos ajudando como seres humanos... A gente não se olha mais, o mundo está esquisito. Como vou puxar um papo com esta senhorinha?"
De repente, ela começa a soluçar sem parar.

- Menina, não sei o que me acontece (irc!) que agora dei para soluçar (irc!).
(Um assunto! - Penso eu alegre.)
E continua, o peito aos pulos:
- Minha filha é médica, se zanga sempre comigo porque sou muito gulosa e só gosto de comer besteiras.
Reparei no prato dela: Macarrão, feijão preto, salgadinho frito, bife.
- Será que a senhora não está com uma gastritezinha?
( Pede um copo de àgua ao garçom, que apalaca a crise soluçólica)
- Gastrite? Eu já operei duas vezes de úlcera, tenho uma gastrite que não vai embora nunca, é isso sim. Mas não consigo mudar de hábitos, fazer o quê, não é mesmo? Você também vai lá pra cima depois?
- Lá pra cima? Onde?
- Você não conhece aqui? Não lembro de ter te visto...
- Não senhora, eu estava caminhando a procura de um emprego e fiquei com a pressão baixa... daí parei no primeiro lugar que vi para comer um pouco, está quente hoje.
- Ah, sim! (rindo- se) Aqui é um bingo, minha filha. No andar de cima. Está vendo aqueles caras ali, e ali? São seguranças, umas graças os meninos.
- É mesmo?
- Sim. Olha, vou te falar uma coisa: Volta e meia fecham o bingo, mas ninguém pensa na quantidade de empregos que este lugar gera! Por exemplo, você uma moça bonita destas procurando onde trabalhar, poderia trabalhar aqui, se fosse seguro.
- Pois é senhora, poderia sim...
- Na última vez em que fecharam a casa, foi uma tristeza. Eu estava jogando e chegou a polícia, porque o "por fora" deles estava atrasado. Você sabe, isso aqui é uma lavagem de dinheiro... Mas você não tem idéia do quanto, menina! Mas enfim. Chegaram os caras, mandaram todo mundo embora. Sobramos só eu e mais um menino funcionário, escondidos. Quando eles sairam, este menino abriu o bocão e começou a chorar. Ele pagava a faculdade e sustentava os dois filhos com este emprego que tinha acabado de perder, coitado! Eu não aguentei, comecei a chorar também. Pelo garoto e pelo bingo, que é minha diversão.
- Que história a senhora está me contando!
- Pois é menina. Esta cidade tem cada coisa escondida, a gente nem imagina quando passa na calçada, não é mesmo?

Despedi-me daquela senhora, carregando esta história cômica dentre tantas que só o Rio de Janeiro parece oferecer aos montes, a quilo. Ao me levantar, desejamo-nos uníssono e ao mesmo tempo um "Boa Sorte!", que veio seguido de uma também partilhada e gostosa risada.
Parece que eu estava certa: Há sempre algo a se ganhar ao repararmos um pouco mais nas pessoas a nossa volta. Ainda que seja um perfeito desconhecido, num restaurante qualquer, numa segunda-feira estranha. Gente é bom demais e vale a pena. Eu acho.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Por Metálicas Espirais

Cheguei em casa feliz da vida, ela costuma ser sofrida por demais. Tirei os sapatos, abri dois botões da camisa. Uma bebida para alimentar o vício e pra rimar no plural, queria só ouvir Vinícius. O descanso da lida, essa vida comprida, que dia. Mas pelas mesmas espirais metálicas que um dia o Vininha recebeu a notícia da morte de Maria, por aquelas mesmas frias espirais, ouvi alguém chorar a morte tão dolorida, o triste fim do nosso amor.
Minha menina, como te amei. E te diria ainda que te amo muito se pudesse, se me permitisses, diria que fazes parte de mim como a espinha do peixe, como o pássaro faz parte do céu e como as baleias fazem amor. Mas fazes questão de desentender, e por favor eu te peço encarecida e repetidamente, por favor, não faças assim.
Fazes assim comigo só porque sabes, fazes assim comigo por acreditares que sou eu o culpado do fim. Mas pelo fim não há culpados, ou se necessário réu, a culpa é do tempo que passa, dos dias e horas deixados para trás a cada dia a menos que temos de vida.
Viver é nada além de uma triste caminhada em direção ao fim, com lampejos de alegrias no caminho...
Mas quem sou eu para te negar ouvidos, em tão frias espirais? Quem sou eu, teu amo e escravo, eu só me rendo e sofro por nada poder contigo ou por ti. E adeus Vinicíus. O meu vizinho se matou de solidão, e eu não quero que morras da solidão em que te encontras, és tão linda e pura, tens tanto por viver, meu grande amor. Um dia quando me permitires, eu hei de dizer-te tudo isso. Mas numa mesa de bar, rindo do passado, já melhores da alma, já crescidos do coração.
Vou desligar, eu preciso sair daqui. Me deixe desmaiar ao menos, já que não tenho a paz necessária para deitar e descansar. E se eu ainda tiver direito a algo, te peço que não chores porque sorrio, não doas porque tenho prazer, não te isoles porque me envolvo, não te abandones porque eu não te abandonei, eu juro. E não te lembres porque não me esqueço, não me acuses porque te perdoo. Não te mates, não me mate. Não te mates senão te bato o telefone na cara e vai doer ainda mais em mim do que em ti, acredite. Não te mates, não me mate. Essa dor é a dor exclusiva dos viventes e precisamos dela, para continuar amando. Para subjetivarmo-nos. Virarmos Pessoa.
Saí de casa sofrido da vida, ela costuma ser feliz por demais. Apertei os sapatos, fechei os botões da camisa. Um jornal a seco pra amargar os sabores, e como se rimasse no plural, queria só ouvir Dolores. O cansaço da lida, esta vida curta, que noite.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Independência

Noite alta, escura noite
De meia-lua no céu dos solitários
Independência, adeus açoite?
Amarras nos corações abandonados!

Numa noite destas, a cama vazia
E um corpo que esfria antes de se deitar
Numa noite destas, a cama vazia
O vento assovia, mas passa sem entrar

Foram tantos corpos, tantas moradas
Tantos apegos deixados no tempo
Independência, para que te quero?
De que me vale nos solitários momentos?

A gente nasce, cresce e padece
Do mesmo mal, todo ser humano
A gente mal nasce, já cresce e padece
Por serem tão imensos os desenganos.

Numa noite destas, a cama vazia, e uma saudade que vem medusa em olhos:
Uns olhos de noite estática e fria com os quais aprendi a olhar fundo nos olhos, de uns outros olhos céu azul de dia, que me faziam lembrar os calmos olhos de um filho de Oxaguiã que outrora foram uns olhos de mal-amar...De tantos olhos, acho que ceguei pra noite.

(Os gatos só são pardos até o acordar)

Numa noite destas, indecente desepero
Que é mais açoite a solidão na cama vazia,
Pr`um coração tão habituado ao cativeiro.

domingo, 28 de agosto de 2011

Poema para um jornal do século passado.

Já era sabida a tragédia,
Porém ninguém se antecipou
Bateu firme num poste de luz
O Bonde que outrora ao Rio alegrou.

Desde a época de Oswaldo Cruz
Já era grande a transformação
Que fazia, pela ferrovia
O bonde com seu apito mandão!

Foi-se morto o motorneiro
Um casal de estrangeiros
E uma alentejana fadista

E do bairro de turistas
(A linda e bela Santa Teresa)
Foi-se embora toda a gente da vista.

O triste ocorrido de ontem
Fez alardear os jornais
Vieram fotógrafos aos montes
Abarrotou os hospitais

O prefeito a se pronunciar
Como sempre o mais ligeiro
Agora só falta botar
A culpa de tudo no morto motorneiro!

Hoje apito do bonde não se escuta
Nas abandonadas ladeiras do bairro
Também, depois do que houve!

E o triste povo vestido de preto
A demonstrar o seu luto pergunta
O que se vai fazer a respeito?


sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Aos filhos de Adão.

Dormes teu sono atribulado, também pudera: herdaste de Adão toda a culpa do mundo.
Trazes nas mãos teus escritos sagrados, na boca a palavra bendita e maldita, a dura palavra de represália, de desgosto. Julga-os ignorantes. És certamente o mais religioso entre eles. O mais fiél. Enganas aos pobres, aos podres, aos bestas, aos desaventurados da alma. Até a mim por vezes enganas por alguns dias ou horas.
Mas eu sou uma mulher.
Tu não, tu és o rei e tudo podes. Só não convences o teu sono de se acalmar, sonhas quimeras noite afora. Nada apazigua a culpa de ser o vil carrasco, o único culpado e responsável pelas dores do mundo. Leva a vida pesada não porque é pesado o fardo, mas porque tem de ser. Deve ser. É assim que as coisas são para os escravos de Jó.
Acordas teu dia cheio, mais um dia de nosso Senhor, onde és mais uma vez de tudo senhor, menos de mim e de si. Em tempo, és ainda um pouco mais senhor de mim, porque me permito, antes de permitir a ti que me dirijas a palavra de desdém. Não há ferida nem afago como aqueles os que a palavra é capaz de fazer. Também disso tu sabes.
Corres tua vida apressada e não reparas as sarjetas, não reparas porque dói e um homem não chora. Imperas rijo do coração. Deixas para mim as mazelas do sofrer por amor ao próximo. Sou eu uma mulher e os meus anseios frívolos pouco importam ao mundo. Muito menos a monsenhor. Dos homens, o pouco que sei é de olhar debaixo. Falar baixo. Da cintura para baixo. E que não lhe atrapalhe a vida minha existência, não lhe envergonhe a costela roubada por outrem e a mim imposta.
Tu levas um brasão no mesmo lugar onde levo o amor.
Tu tens na ponta da língua o que entrou em mim sem que eu me desse conta.
Tu carregas nas costas as mazelas do mundo, enquanto eu, as carrego no ventre.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Velho Lobo do Mar

Atracou o barco, optou consciente por laçar um nó final de pescador (tornara-se exímio na arte de dar nós), mas escolheu um tipo bem simples e eficiente, que quanto mais se puxa, mais aperta. Fim de expedição, adeus oceano imenso.
No cais do porto um cego rabequeiro tocava o Assum Preto, tão triste, tão bonito. Tentou se lembrar de quando tinha sido a última vez em que ouvira aquela música, mas não conseguiu. Não conseguiu se lembrar nem de quando havia sido a última vez que tinha ouvido música de instrumento e não de passarinho. Surpreso, se lembrou que passarinho fazia piado, gente é que fazia música. Tinha muita coisa por reaprender, ou ao menos relembrar.
Agora era retomar a vida em terra firme.
Recolheu uns pertences e uma imagem de Iemanjá. Assim que chegasse em casa e ajeitasse melhor as coisas, viria buscar o restante. Adeus meu barco, minha casa, meu amigo. Adeus solidão das marés. Primeiro degrau e uma pausa antes de descer. Era como se todo o seu corpo continuasse se movendo involuntariamente junto das ondas do mar. O vaivém de tantos anos devia ter adentrado em seus músculos, teve que se segurar ao corrimão, como um velho. Um velho lobo do mar. Muito tempo se passara de fato.
As filhas, como estariam? Sabia que tinha ganhado também uma neta, ficou tão feliz e ansioso por conhecê-la. A chegada da netinha era na verdade o maior motivo do retorno... De suas meninas tinha saudade, claro que sim, mas era uma saudade remota de nostalgia, saudade de quando eram pequenas, indefesas e tinham somente em si o porto-seguro. Eram lindas, duas princesas. A mais velha morena, com o nariz adunco como o seu e a mais nova delicada e bondosa como a mãe. Igualzinha à mãe. A saudade o remetia a um tempo que já tinha ficado pra trás. Quanta água já rolara desde então.
Quando de sua partida, numa tentativa de se manter presente, instalou modernos aparelhos que lhe haviam custado uma fortuna implantar na embarcação. Hoje já estavam obsoletos, mas ainda funcionavam com perfeição apesar da maresia prolongada, eram prova as mensagens que recebia das mulheres que deitava em cada porto, umas preocupadas, outras sonhadoras. Mas de suas meninas, jamais tornou a receber as mensagens de carinho. Quando partiu planejava apenas um passeio pela Costa Verde, onde encontraria com uma amante menina, uma bonequinha de origem oriental. Já não ia bem das pernas o casamento, mas ainda assim, sendo homem de muitas posses, mantinha a casa e as aparências impecáveis. Jamais deixou vazar notícia sobre seus casos.
Era dia de revolta no mar, aquele dia em que soube que sua esposa havia falecido. Iemanjá havia mandado ondas gigantes e não conseguira atracar na costa. Estava sozinho e apavorado, porque não trouxera consigo marujo ou qualquer outra pessoa, para manter as tais aparências. E agora revolta em alto mar. O moderno aparelho de mensagens apitava sem parar, mas não conseguira fazer contato, estava sozinho com aquele mar imenso, com aquele castanho claro de água fria em revolta. Oito horas se passaram, perdeu o prumo, o barco ficou à deriva. Quando conseguiu tomar novamente ciência das coisas, o recado que dizia: “Sua esposa acaba de falecer. É urgente retornar.”.
Leu a mensagem umas trinta ou quarenta, ou duas vezes. Não podia se lembrar ao certo. Mas lançou-se ao mar e boiou por longo tempo, na calmaria de depois de rebuliço. Pensava em suas meninas, o que seria delas agora? Pensava em voltar e se deparar com a tristeza em seus olhinhos, insuportável. Não, ele não ia conseguir. Era forte de corpo ainda então, mas tinha um espírito muito mole, um coração fraco. Morreria ao vê-las tão tristes, e num ato de egoísmo, resolveu não mais voltar. Em seus pensamentos, após tantos anos (quantos seriam?) muitas vezes havia brigado, feito as pazes, discutido com aquelas memórias. Estava certo de que as filhas já haviam o perdoado, o tempo e as memórias tinham sido complacentes consigo, tinham amenizado as dores, tinham estreitado os laços, desfeito os nós.
Já era hora de voltar.
Se bem se lembrava do caminho, ainda com certa dificuldade de caminhar em terra, iria a pé. Não era muito longe dali da marina. Um velho marujo o reconheceu, com uns olhos de quem vê assombração. Sorriu pra ele: “Bem vindo de volta, velho Lobo do Mar”.
É verdade, estava velho. Penou muito mais do que outrora a caminhada até o portão de casa, a mesma cerca já puída, ia dar um jeito naquilo. Caminhou pelo extenso jardim devagar como quem degusta a iguaria de um bom vinho, as memórias como flechas lançadas pelo tempo, surgindo na mente e esvaindo-se com a mesma rapidez, as memórias se fazendo presentes. Viu a Mangueira, o Jasmim-Manga, o Jasmim-Trepadeira, o Manacá-da-Serra, todas aquelas coisas da terra, da raiz do chão. Parou perto do lago artificial, olhou para dentro de casa e viu uma menina linda, cheia de cachos, e imaginou ser a sua caçulinha, seu neném. Mas a mulher que chegou e pegou aquela criança no colo, quem seria? Pelas barbas do Profeta, era ela sua caçula. E a menina dos cachos, era então sua netinha. O tempo e as imagens brincavam de ir e vir, como flashes de vagalume na noite escura, brincando de pisca-esconde. Não concordavam. Bambeou. Voltara para o mar ou ainda se mantinha ali em pé? Estava chegando ou saindo para viajar? Muito tempo se passou, estava velho. Falência múltipla dos órgãos, diriam os médicos depois. Falência múltipla das histórias, dos conceitos, do tempo. O tempo, o tempo.
Com os olhos mareados, voltou caminhando devagar ao portão. Era mesmo na solidão que deveria se manter, já não pertencia ao mundo dos iguais. Suas meninas eram melhor sem sua presença. Jamais deixaria que nada faltasse, nunca. Dinheiro nunca lhe fora problema, tinha muitas posses. Demandaria de alto-mar que alguém viesse e consertasse a cerca.
Voltou ao cais do porto, fez reverência ao marujo, seu velho amigo. O rabequeiro agora tocava Maracangalha: “Eu vou só, eu vou só...”. Apertou os ouvidos para guardar em si aquela imitação de passarinho que os homens fazem com instrumentos.
Voltou ao mar para nunca mais, deixando em terra seu tesouro.


segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A morte de Inocêncio.

Foi claro o instante em que ele se perdeu. Eu sei, pois estava lá.
Eram quase seis da tarde, dia caindo num sábado de sol. A patota toda no Bar do Gomes. Chegou cambaleando pelos trilhos, mas ainda não bebera. Estava trôpego mesmo assim, carregava uma mochila pequena como quem carrega uma cruz pesada. Vestia um short meio velho, uma camisa desbotada e tinha uns olhos verdes de fazer inveja à Natureza. Mas os olhos estavam encharcados.
Eu o reparei, pois era bonito de dar gosto. Magro, cheio de dentes brancos, uma cabeleira castanha. Mas hoje penso se não poderia eu tê-lo salvado naquele momento se não fosse este mundo tão besta, as pessoas tão despreocupadas das outras, que injustiça. Tivesse eu chegado perto dele e dito: “Olá meu irmão, meu parceiro de jornada. Vejo teus olhos tão tristes, quase posso sentir tua dor. Vem cá que lhe ofereço meu afeto de graça, vem cá que minha mãe Osùn me ensinou a ser carinhosa, pode chorar em meu ombro, pode confessar tua mágoa que eu lhe dou em troca minha amizade. Somos irmãos de jornada, afinal.”
Mas não. Eu apenas o observei, uns quatro meses atrás.
Entrou no bar, comprou uma garrafa de cachaça. Saiu sem olhar ninguém, sentou-se na sarjeta afastado da multidão e bebeu a garrafa toda de uma vez, os olhos verdes estáticos, quase extáticos. Ali permaneceu por dois dias e duas noites, em silêncio. Tornei a vê-lo algumas semanas depois. Reparei no quanto vinha sujo e que certamente tinha levado uma surra. Mas já estava falante, falava até demais, incomodava, pedia cigarros aos passantes que um pouco amedrontados o mandavam embora. Profanava à Deus e o mundo. Começou a ter alucinações militares, a chutar cachorros, enlouqueceu.
Sem entender eu perguntava às pessoas o que havia se passado com o rapaz. Eu não conseguia acreditar no que estava vendo acontecer e uns diziam que era porque devia usar muita droga, outros que ele sempre fora assim, maluco. Mas um ex- vizinho dele me disse que foi amor.
No dia em que ele se perdeu, havia sido expulso de casa pela mulher. Se batia nela, ou a havia traído eu não sei. Se era um amor bonito ou bandido, com história de horror ou romance, ninguém soube informar. O que há entre os casais, fica sempre apenas entre os casais e só eles sabem do que é ou não verdade. Aliás, muitas vezes nem mesmo eles sabem do porque do fim. Às vezes mesmo havendo amor não é possível ficar junto e em outras, mesmo havendo um grande amor, outro amor está escondido numa trincheira do caminho.
Como me dói a imagem deste rapaz, que apelidei em meus pensamentos de Inocêncio. Como me dói não ter feito nada por um semelhante, que padecia da dor mais banal e pior do mundo. Como me doeu na semana passada, quando ele me pediu um cigarro e eu dei, recebendo como resposta uma apunhalada: “Se a moça precisar de qualquer coisa pode contar comigo, viu?” E saiu correndo entre os carros.
Todos no bairro já aprenderam a conviver com ele. Estamos todos assistindo à sua morte, é fato. Outro dia se jogou na linha do bonde e não havia quem conseguisse o tirar. Deu agora para ser violento. Até o Pinel já chamaram, mas não há quem dê jeito de convencê-lo a sair da rua. De tantas surras já perdeu os lindos dentes, anda ranhento, fede, não tem mais nada de seu.
Hoje pela manhã, quando o encontrei de novo e foi insuportável a cena de desolação, cheguei mais perto para ouvir o que ele rezava em voz sussurrada, na esperança de oferecer-lhe um abraço. Meu Deus, como pode? Baixinho ele dizia, embalando seu próprio corpo largado ao chão como quem embala a toda a divina criação: "Pára, por favor. Pára, coração...".
Eu sei porque estava lá, eu vi o dia em que Inocêncio, ainda vivo, morreu de amor.

domingo, 14 de agosto de 2011

Pra Inglês Ver.

I miss you so much, dear
And still you haven`t called
For since eleven a.m.
I haven`t heard your voice
Come fix this burning pain
Come tell me it`s your choice
And that you feel the same
Caress of mine, that`s yours

I`ve also been today
To that place we first met
Hopping to hear from you
I left deep in regret
There I could get no sign,
No shadow, someone bet
Tonight he won`t show up
And you`d better forget

So I just came away
And found my empty home
You left me here to stay
Someday again you`ll come
And when that day arrives
I`ll say : as you no one
But have a pretty day
`Cause I do best alone.








terça-feira, 9 de agosto de 2011

Se eu soubesse

Se eu soubesse do que como, não negaria um pedaço
Se eu soubesse por onde ando, daria as diretrizes
Se eu soubesse do que quero, eu pegaria no laço
Se eu soubesse do que bebo, não mais diria tolices
Se eu soubesse dos perigos, não me lançava ao mar
Se eu soubesse o que há na noite, só viveria de dia
Se eu soubesse da vida, ai, se eu soubesse!
Seria difícil fazer poesia...

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Na presença do mestre.

Há quanto tempo, ainda que ausente em corpo, acompanhas cada um de meus passos.
Sabes tudo de mim e por inúmeras vezes já narrastes minha vida, dìtastes o andamento de minhas paixões e das piores perdas, as mais tristes e foi sempre em tuas palavras de amor ou de adeus que eu encontrei alento. Até mesmo da morte já me salvastes em vida. Há quanto tempo, desde que para mim o mundo é mundo, eu penso em ti diariamente querendo ou sem querer. Pois era sua a canção que minha mãe cantava para embalar-me ao berço, e do mesmo modo eu embalei minha irmã mais nova e meus doze primos e um dia eu hei de embalar um filho meu. Eu te digo sim e te escolho, eu busco seu nome dentre tantos para alegrar meu dia, eu solto ao ar suas palavras, eu te roubo, eu te gasto, eu te escravizo quando me tocas profundamente e ali você permanece cantando ou contando causos, incessantemente, até que tuas palavras entrem em meu peito de forma que seja impossível tirá-las. Eu te apreendo... E deste modo já me causastes as emoções mais lindas e as mais feias e continuas.
Agradeço a Deus pela sua saúde e por sua inspiração infinita (este milagre que ocorreu num Rio de Janeiro de tantos mistérios). Agradeço diante da imensidão do tempo, das eras, dos séculos, por compartilhar uma época contigo, um país, uma cidade. Isso tudo já me bastaria, eu já viveria a te cantar por aí a plenos pulmões na certeza de que professava as palavras de um sabedor das coisas.
Mas ontem, meu mestre, você foi me aparecer. E virou gente, teve carne, osso e olhos para mim. Disse meu nome, me apontou, me tocou no ombro antes de ir embora com um gesto de carinho. E diante de ti, silêncio. Diante de ti, nenhuma palavra. As palavras são suas e meus os ouvidos, diante de ti alegria de aprendiz, porque falas apenas a língua sagrada dos poetas e dos passarinhos, és um bruxo, um monstro, mas acima disso és um homem simples e do bem.
Diante de ti meu mestre, boca para sorrir e mãos para aplaudir. Nem nos meus sonhos mais absurdos eu poderia imaginar um privilégio tão grande. Se minha jornada terminasse de repente e hoje eu partisse deste mundo, eu iria feliz, eu juro. Subiria aos céus dançando, embalada por um canto seu.
Na sua presença meu mestre, quanta gratidão!

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Venha, meu samba.

Venha, me socorra
Hoje eu preciso aprender a viver.
Venha meu samba adorado
Traga seus poetas,
Salve mais um afogado
Como Drummond ensina a fazer

- Engrosse este ar que me envolve rarefeito teimando em não preencher os pulmões e por isso são só suspiros fundos e expiros em melodias: valsas, modas, lamentos. Já são boleros demais para este pobre coração, venha meu samba e traga seus versos e batucadas! -


Conforme esta veia de escárnio,
Tire o mundo de meu umbigo
Diga que isso já se passou contigo e com tantos outros mais.
Venha meu samba, me ensine a viver de si e por si só
Reze que são tantos e imensos os seus amores
Que te não surpreenderia ademais
Serem tão miseráveis os poetas,
Quando tão errados os casais.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Com meu botões.

Assim que o céu cobrir de fino tule seu breu, logo nos primeiros pontos de madrugada eu vou...

Embora aos poucos e com preguiça descosturar os tecidos grudados até então, fiapo por fiapo, prega por prega. Com calma recolher as pedaços de pano abandonados no caminho, escorrer novamente e quem sabe pela última vez a fazenda macia sobre o antebraço, sentir o peso e a boa textura que possui, o que ela causa na pele. Entre os dedos acarinhar as franjas escuras, mechas de melindrosa fantasia de um efêmero carnaval, os penachos, sentir-lhes o cheiro. Levar talvez um fio grudado no sapato.
Desenrolar um carretel inteiro de barbante de uma só vez, gastar verbo, há tantas histórias para contar. Ver o fim da linha, o derrubar voado do carretel, encerrar tudo isso num bordado multicolorido: ponto-cruzes credo, renda-se de bilro, umas lantejoulas latejantes.
Olhar para o ateliê desarrumado, ouvir o bater seco de portas atrás.

Assim que o céu cobrir de rude chita seu clarão, logo nos primeiros pespontos de arremate, eu volto...

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Implacável

Guarda em teus olhos a calma que possuías antes de me conhecer, aquieta tua alma terna e carinhosa, aquieta teu espírito que amor nenhum vale uma dor tão profunda. Recupera naquela admiração por flores e melodias a beleza de um amor vivente, a beleza de saber que sempre há, invariável e insuperavelmente, um novo amor. Abraça teu instrumento onde antes havia meu corpo cantante, busca nele a guarida, compõe uma nova história
- pacifica por favor teu coração! - que todo fim é em tempo o começo também.
É certo, logo vem um novo amor.
E este novo amor, acredita, também virá belo e eterno em sua imperfeição, será tudo em seu dia longo, será devoção e alegria... Aos bocados vai encher a casa de perfume, vai te deixar acordado ainda que com sono, vai te preocupar profundamente com o tamanho dos cômodos e sobre a reforma quando os filhos vierem.
E depois de certo tempo, sendo este novo amor vivido, também ele passará, invariável e insuperavelmente, doerá no fundo da alma por uns dias ou anos e tornar-se-á cada vez menos profundo e mais desbotado, até que num porre ou numa benção seja exorcizado de sí, até que passe.

O tempo, este Deus de tudo sabedor.

Guarda em teus olhos a calma que possuías, pois eu não pretendia te privar de nada nem tampouco desejei o fim de tudo, eu até tentei muito. Mas o fim quando vem é inevitável, a morte é na vida a única certeza, assim como é certo o fim de um amor que ficou mal de saúde, que se perdeu num labirinto de dúvidas, que se enganou inocente. Um amor qualquer como o amor da gente, que foi tão bonito e tanto me fez feliz.
Aquieta tua alma, faz um chá. Olha pra televisão como se fizesse sentido, ri a tôa por alguma besteira, é como tenho feito. Fuma alguma coisa, cozinha algo demorado, ajuda o tempo a passar mais depressa, que o tempo não tarda ainda que amanhã demore, ainda que sofra mais um pouquinho e uma lágrima corra molhando teu belo rosto. Lava tua linda face com uma água boa de cachoeira que amor vem chegando, em algum lugar deste mundo afora ele vem caminhando em sua direção, espreita, faz tocaia silencioso e mais hora menos hora te toma de assalto.
E eu, com minhas palavras vazias espero com paciência este teu amor chegar e me doer, me açoitar sem pena e rir da minha cara como quem diz : foi você quem me deixou, foi você quem zombou deste amor e agora pena a tua dor sozinha ou com teus amigos do bar, com teus livros ensebados.

O tempo, este Deus implacável (ou como aprendi hoje comendo um dicionário - aquele que não perdoa).

terça-feira, 12 de julho de 2011

Uma cigana.

Cruzou a cigana comigo, me pediu a mão em troca de nada. Trazias notícias de vidas passadas, oráculo preciso do mistério: - Vem minha filha, deixa eu ler tua mão.
Eu relutante mas ainda mais curiosa, espalmei.
Olhou atenta minha mão direita, tornou olhar. Eu sabia por quê ela se questionava. Não esperava encontrar em minha palma uma cicatriz tão profunda que rasga do mindinho ao dedão.
Olhou-me com seus olhos negros profundos e desolada me disse apenas que se havia destino para mim traçado, a própria vida já havia tratado de desfazer as linhas, espalhá-las, mas sem que as reorganizasse. A cigana temeu por minha sorte, eu vi em seus olhos o que ela não havia sido capaz de enxergar em minha mão. Pobre diaba, apenas atravessei a rua e continuei minha caminhada em direção a lugar nenhum.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Ócio criativo

O dia todo eu só lembrava, mas de tanto me esforçar consegui esquecer.
Por 60 segundos fiz outra coisa e escrevi duas linhas sem pensar em você.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Uma média e dois pão na chapa.

Seu garçon, lhe peço sem vontade
Uma média e dois pão na chapa
Pro pão uma chapa bem quente
Pra média uma gota de mágoa

Bota neste pão a manteiga
E açúcar dentro do café
Capriche sem ser miserento
Tenha pena desta infeliz mulher

De amarga já me basta a vida
Tanta média para pouca atitude
Já se engole a seco tanta desdita
Já me resta hoje tão pouca saúde

Me traga agora na base de Noel
Uma boa média que não seja requentada
Que eu não estou disposta a ficar exposta
Mesmo vindo ao mundo pra ser condenada

Seu garçon, me traga depois
Uma boa dose de lirismo
Porque sem ele eu não dou cabo disso
É demais o mundo em seu egoísmo

O que pode senhor, uma triste mulher
Desejar desta vida além?
De engolir untado o desagrado
E empurrar goela abaixo o desdém?

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Um certo choro no Bar Luiz

A noite feita de eclipse tornava as ruas ainda mais chamativas, pleno junho até no Rio de Janeiro faz frio. Noite perfeita para a solidão de um botequim antigo e para a alegria boêmia de uma roda de choro. Eram cinco quando sentei na mesa. O mais velho, solista, tirava agudos limpos e soltos de uma flauta transversa, enquanto conversavam os violões de seis e de sete em perfeita harmonia. Levada de cá, baixaria de lá, condução de cá, tome mais baixaria de lá, vai ponteio, vai ponteio!
O mais novo, no cavaco, era um competente serelepe. Fazia os pedidos, mostrava a que vinha, sorria como quem está onde mais gostaria de estar. E havia o gato, um pandeiro todo remendado e seco, que marcava e seguia sem firulas, ajudando aos companheiros e conduzindo a massa. Generoso pandeiro na mão de um forasteiro.
Era um remédio para um coração cansado de doer, era uma carícia para os ouvidos e para o corpo inteiro que junto do som vibrava a cada nota, compasso após compasso. Uma roda de choro e uma mesa de bar, era quarta-feira na Cidade Maravilhosa e assim como o ecslipe veio e foi, assim foi com minha solidão. O choro, bondoso amigo, levou em sí o pranto, pegou a tristeza e absorveu. O choro tirou de mim o lamento e levou para morar em suas melodias.
Mais tarde aprochegaram-se outros músicos mais, outro pandeiro, outro violão de sete cordas, mais uma flauta para a conversa, mas o que prendeu minha atenção foi um camarada manso com seu saxofone, um certo tipo quieto e cheio de humildade, mas quando soprou o primeiro acorde,o ambiente todo mais uma vez se transformou, e o delírio foi geral. Ou pelo menos eu acho que sim, que todos no recinto deliravam como eu, que ao ouvir a música mais linda que conheço, "Ternura" de K-ximbinho, quase me joguei na sargeta e me rolei de amores , junto dos outros tantos bêbados e insanos que habitam a velha Praça Tiradentes.
Na boca da noite, de uma certa roda de choro do Bar Luiz eu saí inebriada e curada da alma, eu saí tão mais crescida, eu saí tão mais feliz pela bondade desta terra de artistas para comigo. De um certo choro no Bar Luiz, eu sai agradecida por me ser permitido sentir toda esta alegria singela que mora no coração de quem ama a boa música brasileira.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Daniel vai viajar...

Daniel resolveu que vai viajar. Vai pendurar mochila nas costas e ganhar mundo por aí.
Sabe desde pequeno que menor é o mundo, já correu miúdo Oceania, já sempre viu o pai sair e voltar, sabe que mundo é morada de muitos mas que as coincidências também sendo muitas, fazem com que todos acabem nesta vida se esbarrando em algum canto de cidade.
Daniel meu amor, vai viajar, correr Zoropa de mochila nas costas, alfaia e violão.
Sabe que país é grande, mas menor é o mundo, desde garoto viu a irmã mais velha sair de mochila nas costas, foi morar tão longe que vinha rara, cheia de sotaques e novidades, ficava bravo se a desconhecia, mas hoje tambem já mudou de sotaque e arrasta mineiramente os uais e sôs.
Daniel meu moreno vai para uma terra que ouvi dizer ser cheia de tulipas, as mais belas tulipas, que se fosse outrora ele cuidaria com especialidade, saberia dos fungos e das pestes, mas hoje Daniel quer saber de tulipas só como presente pras namoradas, de flores só para enfeitar cordão de maracatu, para colorir fotos e cenas. Daniel quer das plantas as alucinações mais belas. O meu Daniel agora quer saber é de arte.
Vai menino grande, vai jovem homem abrir horizonte. Vai que hoje já sou eu quem mais te admira e este mundo velho sem porteira é todo seu. Eu cheguei primeiro só para te dizer que o mundo, meu amor, é uma maravilha, e que a arte é a única verdadeira razão da existência. A arte é o amor traduzido, é o espírito em forma e eu cheguei primeiro só para saber que um dia, quando chegaste a sua hora, eu seria aquela a torcer por cada dia de luz e sol em teu caminho.
Daniel vai viajar, vai correr estrada afora bem sozinho, como se nasce e se morre neste mundo. Vai ganhar experiência, vai se doar, vai amar, vai crescer, sentir saudade. De saudade um dia padeço eu de ti, carinho.
Vai Daniel! Vai meu Dandan virar passarinho...

domingo, 5 de junho de 2011

O mundo dos Homens.

E agora que já haviam reconhecido em seus corações aquela estrondosa verdade, agora que já havia uma mínima calma em sentir aquilo que antes perturbava e que então se apresentava à razão estranho e confuso, havia o resto do mundo. O mundo além deste universo mágico e recente, acolhedor. Havia de se respirar fundo e mergulhar no mundo dos homens.


Sentaram-se lado a lado no concerto, fazendo uma tímida manobra teatral combinada anteriormente no carro, estacionado dois quarteirões distante. Primeiro um depois o outro adentrariam por portas diferentes, cumprimentariam-se como se não se vissem há dias e só então escolheriam uma fileira no fundo da sala. Encontraram logo após uma pilastra que escurecia ainda mais os assentos, e sentaram-se lado a lado. Que alegria sairem juntos para ouvir música da melhor qualidade. Havia mesmo certo frisson em manter este segredo, havia algo de sensual que acelerava os corações e fazia com que a música, forte como veio, os embalasse numa aventura sem par: enganavam a todos, menos aos próprios corações. Sorrateiramente, um às vezes encostava no outro o sapato ou o joelho, de lado como se estivessem comprimidos por tantas pessoas em volta e nem percebessem que haviam se tocado, mas por mais que assim se portassem para fora, nos corações este mínimo toque fazia folia, explodia em cores, aquecia.
Ao espreguiçar-se, o primeiro esbarrou no segundo um braço que esticou-se em mão numa carícia quase imperceptível. Ao inebriar-se com perfeitas harmonias, o segundo sorriu ao primeiro de canto, e foi como se lhe desse um beijo.
Mas depois voltavam a sua expressão de camaradagem e interesse pelo show, as mãos frias e os corações quentes, o exercício da dissimulação.
Era tão grande e tão belo este amor, mas como era mister ser velado! Porque impossível e indesejado a olhos ruins de maldade, havia de se manter um segredo, era demasiado impuro aquele lindo amor perante o mundo dos homens e do preconceito.

Eu derrubei-lhes os olhos sem querer e me comovi com seus gestos de ansiedade e medo, mas de cumplicidade e amor. Não os vi partir, mas tenho certeza de que foram juntos, para desafogarem-se de tal realidade e serem plenamente felizes novamente ao retornarem ao seu mundo de afeto.

Eu vi dois homens e dois mundos, para dois corações partidos.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Saudades da Ilha

Hoje veio inesperada, numa brisa gelada, uma saudade tão imensa.
De dias de sol com casaco e cachecól, de Lagoa da Conceição, de pinhão, de fogueira, de calmaria. Hoje tudo eu daria para estar na minha amada Ilha da Magia.
Era sempre em dias assim que tudo ficava sereno. Morava eu numa casa pequena, mas com um grande amor. Vivia eu entre minhas flores, minhas ervas e animais, na mais perfeita inquietude de quem sonha alto, com cidade grande, com grandes feitos, com vôos distantes. Vivia eu em paz, contudo, imaginando que naqueles dias de frio e preguiça, nada aconteceria demais. A tarde cairia cor de rosa entre músicas e livros, e quando a noite chegasse enluarada e gélida, um vinho gaúcho esquentaria uma conversa mansa com a vizinhança tão amiga, o fumo traria boas risadas a tôa, e mais tarde o cobertor sobre a cama simples de fina madeira teriam o conforto de um ninho. Adormeceria nos braços de alguém sonhando com novos horizontes, mesmo sabendo da alegria daquele meu horizonte despoluído, daquele mar rugindo depois das dunas e que do quarto de dormir se podia ouvir o bradar madrugada adentro. A rua calada, não fosse pelos latidos da minha fiél companheira canina Menina e dos vários ninhos de corujas que habitavam nomeando assim a servidão Toca da Coruja.

Se hoje fosse ontem, lá estaria eu sonhando como estou, só que ao contrário.

Por que será que esta veia de inquietação insiste, se é tão mais feliz aquele que encontra em seu cotidiano a beleza e a calma de estar exatamente onde gostaria de estar?

Se a saudade matasse, eu cairia dura neste instante, para nunca mais.


Para todas as pessoas amadas que estão onde eu queria estar neste momento. Beijem com muito amor a Ilha por mim!!!

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Precioso

Pedra preciosa, turquesa rara,
teus olhos de tara quando a manhã vem.
Pérola aos montes, seus dedos cortantes
a dedilhar poesia sempre que me quer bem.
Ouro dourado, teu beijo eperado,
rente ao meu pescoço arrepiado.
Vermelha granada, tua boca rosada,
grito estancado em minha boca molhada.

Falso brilhante, você meu amante.
Te quero comigo, vero diamante.

Púrpura ametista, nossa veia de artista
Verde esmeralda, que de mim se esbalda
Quando safira, vai e se retira
Quando rubi, fica e me sorri.

Mais que gostosa, coisa preciosa
Ver nosso amor por nós ser lapidado
Tal qual minério, na terra guardado
Por nosso Senhor um dia gerado

Para que no dia em que por nós fosse achado
Fosse assim estimado, apreciado e cuidado.
Mais que gostosa, coisa preciosa,
Meu peito por ti tão enamorado.



Para o meu amado violeiro, dos olhos de turquesa e dedos de ouro. Ai como te quiero, ao som de um bolero.

terça-feira, 10 de maio de 2011

De tarde na Janela

Em dias quando o vento sopra o bailar de pássaros no céu,
O véu que cobria as encostas dá lugar ao brilho, ao verde macio
E azul se faz o horizonte, mistura-se longe com a cor do mar;
Sinto bater nas costas inspiração, poesia a chamar.
Se já não me faltam palavras para respingar sobre a melodia,
Se àgua cobria a cidade, os barcos passavam com a nostalgia.
Agora este dia sereno, um quarto pequeno preenche de amor
Sabor de um novo começo.
Que a canção, em seu avesso
É o triste silêncio de um cantor.

domingo, 24 de abril de 2011

Pancada no estômago

Primeiro eu quero agradecer muito a doutora por ter me recebido aqui, porque afinal a gente que é do povo vive largado quando o assunto é lei, justiça, essas coisas, e desta vez eu realmente batalhei estar aqui para a senhora me ouvir e a justiça ser feita.
Não pude deixar de reparar que a doutora é muito nova de idade, não passa de vinte e poucos anos, acertei? Então talvez seja até um pouco difícil para a senhora entender o que venho aqui dizer, porque com tão pouca idade ainda não deve ter passado muita coisa, nem penado muito ainda na mão de homem ruim, de homem safado... se bem que eu na sua idade não apenas já tinha penado um bocado como também já era mãe de dois, e tinha mais um no bucho, tudo filho dele, o desgraçado que teve a cara de pau de vir aqui e prestar queixa de mim.
Se a doutora me permite, eu queria começar a história do começo. Tenho certeza de que me dará razão.
Tudo começou na segunda-feira, que depois de encher a cara o fim de semana inteiro, ele chegou estranho em casa. Porque o negócio é o seguinte, depois de aprontar todas no final de semana, segunda-feira é dia em que ele sempre se arrepende, diz que vai cuidar de mim, traz comida pra dentro de casa, e quando a ressaca da bebedeira e da moral ficam bravas mesmo, até um mimo pra mim ele traz. Pois bem.
Na segunda-feira desta semana chegou com uma cara esquisita. Trouxe meio quilo de asa de frango que era osso puro, nem falou comigo direito, disse que estava cansado e foi direto tomar banho. Fiquei na minha porque sabe como é, as vezes a gente fala um nada atravessado e já viu. Fui logo preparar a comida e vou te dizer que caprichei, achei que ele deveria estar realmente muito cansado, ou o dinheiro curto demais. Comeu e não disse nada, nem uma palavra de elogio, como era de costume. Ele só casou comigo por conta do meu jeito com cozinha, ele amava minha comida e comeu a vida toda com fartura, não importava a falta de dinheiro: O pouco que tinha, ele e meus filhos comiam bem e gostoso, eu faço milagre na beira d'um fogão.
No dia seguinte, chegou do mesmo jeito do serviço, só que mais de uma hora mais tarde que o normal. A janta já estava pronta, mas eu deixei em banho-maria, para não esfriar e ele não chiar comigo. No maior capricho, como sempre, eu tinha conseguido um pedaço muito bom de carne de primeira para fazer cozidinha na panela com legumes. Ele mal me olhou, sentou, comeu e daí foi que eu me lasquei. Reclamou da minha comida.
Doutora, sabe o que são 25 anos de convivência e nunca, nunca uma reclamação destas? Este homem já reclamou de tudo, já me fez coisas que até o Coisa-Ruim duvida, mas reclamar da minha comida, jamais. E foi aí que eu entendi o que estava acontecendo. Lembrei de minha tia me dizendo isso quando eu ainda era menina, que o homem da gente quando reclama da comida de dentro de casa, só pode ter outra mulher na história. A boca azeda: Isso era traição.
Dormi com um nó na garganta que calei com um gole de leite morno antes de deitar. Mas matutei até de madrugada, fiquei lá me enrolando de ciúme na cama, pensando na cara da safada, pensando no que ele aprontava ao lado dela, no que ele gostava, na comida que ela fazia.
Quando acordei de manhã cedo para botar o café pra ele antes de sair, foi o golpe fatal. Reclamou também do meu café, dizendo que estava forte demais e que mais parecia uma tinta preta, com aquele pó de péssima qualidade.
Doutora, eu vou ser muito sincera. Eu enfiei a mão nele, e enfiei com gosto. Bati até cansar, meti logo um chute no meio das vergonhas e quando ele caiu no chão eu chutei muito mesmo, gritei, chorei feito uma Maria-louca, não vi nada na minha frente. Mas eu juro: não apontei a faca pra cima dele. Isso que ele veio aqui falar pra senhora, esta conversa de ameaça de morte não é verdade, doutora. Não com o amor que eu tinha por aquele maldito ingrato.
É verdade: Eu bati e bati muito. Mas longe de ameaça de morte. Na quarta-feira doutora, quem morreu fui eu.




Para minha querida prima Lívia, futura doutora. Te desejo boas provas, e muitas histórias envolventes.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Dia da Mentira

Rio de Janeiro, 1 de abril de 2011.

Caro Senhor Deus,

Venho através desta comunicar-lhe do fato de que decidi me regenerar.
A partir de hoje não mais irei aos bairros boêmios, não mais circularei com amizades de comportamento subversivo ou duvidoso. Garanto que não saberás de mim nas rodas de samba, nada mais de suor nem de batuques, muito menos de violão (isso nem de longe). A partir de hoje abandono botequins, bebidas alcoólicas e cigarro, conversa fiada, vadiação, rodas de capoeira. Não mais saberás de mim pelas quebradas, e assim serei uma mulher mais digna e feliz, de recato e bom tom, bons empregos e costumes. Inclusive pretendo muito breve arranjar um bom casamento e constituir família católica e nuclear. Desejando que me perdoes os fracassos, a partir deste dia, Senhor, me regenero.

Iara C. de Souza Ferreira.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Sincopado

Meu Deus, o que é que tem
Este tal de sincopado
Este gingado malemolente
Que bate no coração da gente?

O sincopado está na natureza
Do soluço ao tropeço
O sincopado é o começo
E o resultado da cadência!

Eu sonhava esta noite
Com um samba sincopado
Quando veio um galo ao meu lado
Querendo cantar também

E cantou tão dividido
No ritmo balançando
Que eu ali mesmo sonhando
O ouvi sincopar quém-quém

Daí fui eu quem catou cavaco
Com o tal galo das quatro e meia
Ele tinha a síncope na veia
Era um galinho garnizé

Agora veja, que beleza
Como ficou esta quadrinha
Sincopada do galinheiro
Ao terreiro de Fulôzinha!

Samba, meu amor mais querido
Eu sei fazer bom e rebolado
Faço breque,canção e partido
- Mas que tentação, meu amigo!-
Um bom samba sincopado.

terça-feira, 22 de março de 2011

Retrato na Parede.

Na primeira vez em que pousei meus olhos sobre aquele retrato, nada me causou. Era ainda curiosa, pisava em ovos, achava até graça. Ainda não havia amor ou sombra de ciúme. Mas com o tempo, a cada vez seguida em que lá estive, a cada encontro com os olhos estranhos da mulher de outrora este sentimento se transformava.
Nem dor nem desespero. Comecei a sentir-me quase íntima daquele retrato. Nele, ela envolvida pelos braços em que agora eu me envolvia na cama revirada, sorria.
Então de vez em vez passei de ignorá-lo a percebê-lo, às vezes esquecê-lo - o retrato - às vezes fingir que não o via, outras fingir que ele não havia na parede imóvel, estático, lembrança feliz de um tempo atrás, mas não muito atrás. Ela, pássaro belo às vezes de cabelo solto, às vezes coberta em tinta, me sorria enquanto ele me amava. E de vez em vez do retrato me dizia que também sentia ciúme, outras gostava, e algumas vezes me mandava embora e dizia que ali quem imperava ainda era apenas si mesma. Era dona daquilo tudo que eu cobiçava por amor e me negava os olhos dele, o sorriso mais aberto ao lado seu. O retrato era a prova.
Certas noites eu me emudecia perante o barulho daquela imagem. Tremulava: roupa estendida no varal ao vento, corda de bandolim soando. Em outras, fazia do sussurro ao ouvido um grito, para que, quem sabe ela de lá escutasse: veja só, você é um retrato na parede, coisa do passado. Eu estou aqui.(Quem sabe era para que eu mesma escutasse e me convencece de que a realidade era mais do que um retrato na parede).
De manhã então passei a dar-lhe bom dia todos os dias. Em dias de calmaria da alma, por respeito às vezes também pedia licença para adentrar o quarto e tomar-lhe o que era seu em foto. Já me tornara tão próxima dela que a via em sonho, a imaginava andando pela casa seminua e me resignei após tanta insistência a dividi-lo com ela na fotografia.
Em nosso trato silencioso, ficou assim. Seria meu nas horas em que estivesse presente e dela nas horas anteriores ao retrato e para sempre lá congeladas no tempo. Era eternamente seu assim, e meu enquanto durasse este novo amor, na efemeridade tão óbvia do cotidiano.
Até que fossemos irmãs e, sendo feitas de fogo e tom, nos tornássemos tão próximas que congelada no futuro, também eu me tornasse um feliz retrato na parede.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Poema para um novo amigo.

Ando tão emocionada
Com esta coisa de amizade
Que hoje me convenço
De conhecer a tal felicidade
Ter a palavra, os olhos, o abraço, o aperto de mão
Sem duvida fazem bem
E muito bem! Ao coração
No sorriso de um novo amigo
Que a gente percebe de primeira
Mora o sentido da vida
É a alegria verdadeira
Na Terra, temos breve passagem
E o que será melhor então
Do que levar conosco a bagagem
De quem só abriu o coração?
Eu por mim ando emocionada
E peço a Deus perdão
Pelas minhas vaciladas
(Os erros de qualquer cristão!)
Mas que me dê Senhor, nesta jornada
Além de saúde e pão
Sambas para levar nas madrugadas,
E muitos amigos para levar no coração!

Falando ao Coração

Coração vadio, por que choras?
Não foi você quem me disse para me soltar, para enganar o amor, para brincar de vento pela cidade antiga, desacreditar de apegos? Então por que penas agora, coração, pela mazela de um porto seguro, pelo acalanto doce de carinhos? Não era tua canção um maxixe dolente?

Coração mesquinho, por que clamas?
Não era melhor solidão, liberdade das ruas, comigo-ninguém-pode, boca de carmim, dia não e dia sim, aventuras secretas, poesia farta, não te dou meu coração por nada neste mundo, meu eu mais vagabundo e insano, neste ano? Não era tua canção um samba-de-breque malandro?

Coração insano, por que mudas?
De verso para prosa com tal facilidade, agoras queres intimidade, aconchego, comidinhas, se você ficar longe o que será de mim, teu cheiro me embriaga e não o de mais ninguém, será que me acha bonita, usarei o vestido que mais gostas. Pensei que não era a tua canção uma valsa de amor!

Coração bicho-do-mato, por que erras?
Não sabes o que queres e na penumbra me deixas, zombas de meu peito caipira, me escangalhas, desdenha, brinca em mim saltitante, assim como a lua enchendo e maltratando a beira dos rios, descabendo do corpo, enlouquecendo a tôa, fazendo drama e alarde, ainda que tarde, já é muito tarde para mudar de idéia. E agora, coração, que me resta? Não era tua canção uma simples seresta?

Por nada haver além, só resta o agora! Mudas de seresta, confessa teu erro na valsa, clamas pelo malandro e segura o tempo neste maxixe dolente! Que és capaz de tudo comigo, coração. Porque em mim em tudo mandas. E porque sei que a mim não mentes.

Ibejis

Conta a história dos Ibejis que estes nascem irmãos gêmeos, e dividem ao longo da vida uma mesma alma.

Quando eu sinto você sente, e antes mesmo que você diga eu já pensei naquilo, ou tive a mesma idéia. Porque sem que combinemos, nos vestimos com a mesma cor, pois foi daquela cor que acordou nossa alma partilhada.
E se meu coração sofre, sofre também o seu que bate atrasado e apertado mesmo sem saber a razão e se pergunta: o que está acontecendo comigo? Então busca em mim consolo, e assim fico eu também mais feliz na tua presença, que mesmo quando em silêncio, diz tudo aquilo o que eu precisava ouvir.
As brincadeiras que só nós entendemos, muitos até invejam. E ao verem nossa amizade pensam: o que há com estas duas, será que são loucas, estão de firula ou de fita? E deixamos risonhas os outros pensarem o que bem entenderem porque mesmo que explicássemos, jamais seriam capazes de entender.
Por partilharmos da mesma alma, acho que nascemos com o corpo tão diferente. E foi para que nós mesmas não nos confundíssemos. Mas ainda assim, às vezes me olho no espelho e vejo você, porque também mora em meus trejeitos, na cor de minha pele que contrasta com a sua pele.
Quando eu nasci de mãe e pai no interior, você já tinha nascido de mãe e pai em outro canto distante do país, numa capital cheia de coisas e que bonito, depois de mulheres feitas, nos percebermos Ibejis no primeiro olhar. Você chegou em minha vida já me dando a mão e assim nos reconhecemos irmãs nesta vida novamente. (acho que quando isso aconteceu nossa alma ficou feliz e ganhou força).
Rezo a Deus todos os dias que te conserve assim, perto de mim por muito tempo e que mesmo em ocasião de não nos vermos por muitos e muitos anos, possamos saber da vida uma da outra e possamos também estar perto pela alma e pelo coração. Porque são minhas suas penas e suas pernas, são minhas também suas alegrias e alergias, são meus também seus olhos e seus amores, mesmo aqueles mais vadios, mesmo aqueles que eu te aviso, não vão durar, ou aqueles que quando aconteceram, nós duas nos olhamos e pensamos: aí tem.
Pelas barras que seguramos juntas e as que ainda havemos de segurar. Por você não gostar de quem me maltrata, e ai de quem mexer contigo, pois há de se ver comigo. Pelas nossas músicas preferidas, por aquele meu vestido que fica mais bonito em você, pelo seu jeito de arrumar meu cabelo e me ensinar a limpar as coisas. Pelas viagens que faremos, pelos filhos que teremos um dia e que serão criados como primos, pela grana que um dia te emprestei e esqueci de cobrar, e pelas vezes em que você mesmo não bebendo, me pagou uma cerveja no botequim para que eu ficasse mais calma. Por me dar sempre força e acreditar em mim. Obrigada, minha amada.

Para as minhas Ibejis, Rachel Dantas e Silvinha Dufrayer, com todo o meu amor.