domingo, 24 de abril de 2011

Pancada no estômago

Primeiro eu quero agradecer muito a doutora por ter me recebido aqui, porque afinal a gente que é do povo vive largado quando o assunto é lei, justiça, essas coisas, e desta vez eu realmente batalhei estar aqui para a senhora me ouvir e a justiça ser feita.
Não pude deixar de reparar que a doutora é muito nova de idade, não passa de vinte e poucos anos, acertei? Então talvez seja até um pouco difícil para a senhora entender o que venho aqui dizer, porque com tão pouca idade ainda não deve ter passado muita coisa, nem penado muito ainda na mão de homem ruim, de homem safado... se bem que eu na sua idade não apenas já tinha penado um bocado como também já era mãe de dois, e tinha mais um no bucho, tudo filho dele, o desgraçado que teve a cara de pau de vir aqui e prestar queixa de mim.
Se a doutora me permite, eu queria começar a história do começo. Tenho certeza de que me dará razão.
Tudo começou na segunda-feira, que depois de encher a cara o fim de semana inteiro, ele chegou estranho em casa. Porque o negócio é o seguinte, depois de aprontar todas no final de semana, segunda-feira é dia em que ele sempre se arrepende, diz que vai cuidar de mim, traz comida pra dentro de casa, e quando a ressaca da bebedeira e da moral ficam bravas mesmo, até um mimo pra mim ele traz. Pois bem.
Na segunda-feira desta semana chegou com uma cara esquisita. Trouxe meio quilo de asa de frango que era osso puro, nem falou comigo direito, disse que estava cansado e foi direto tomar banho. Fiquei na minha porque sabe como é, as vezes a gente fala um nada atravessado e já viu. Fui logo preparar a comida e vou te dizer que caprichei, achei que ele deveria estar realmente muito cansado, ou o dinheiro curto demais. Comeu e não disse nada, nem uma palavra de elogio, como era de costume. Ele só casou comigo por conta do meu jeito com cozinha, ele amava minha comida e comeu a vida toda com fartura, não importava a falta de dinheiro: O pouco que tinha, ele e meus filhos comiam bem e gostoso, eu faço milagre na beira d'um fogão.
No dia seguinte, chegou do mesmo jeito do serviço, só que mais de uma hora mais tarde que o normal. A janta já estava pronta, mas eu deixei em banho-maria, para não esfriar e ele não chiar comigo. No maior capricho, como sempre, eu tinha conseguido um pedaço muito bom de carne de primeira para fazer cozidinha na panela com legumes. Ele mal me olhou, sentou, comeu e daí foi que eu me lasquei. Reclamou da minha comida.
Doutora, sabe o que são 25 anos de convivência e nunca, nunca uma reclamação destas? Este homem já reclamou de tudo, já me fez coisas que até o Coisa-Ruim duvida, mas reclamar da minha comida, jamais. E foi aí que eu entendi o que estava acontecendo. Lembrei de minha tia me dizendo isso quando eu ainda era menina, que o homem da gente quando reclama da comida de dentro de casa, só pode ter outra mulher na história. A boca azeda: Isso era traição.
Dormi com um nó na garganta que calei com um gole de leite morno antes de deitar. Mas matutei até de madrugada, fiquei lá me enrolando de ciúme na cama, pensando na cara da safada, pensando no que ele aprontava ao lado dela, no que ele gostava, na comida que ela fazia.
Quando acordei de manhã cedo para botar o café pra ele antes de sair, foi o golpe fatal. Reclamou também do meu café, dizendo que estava forte demais e que mais parecia uma tinta preta, com aquele pó de péssima qualidade.
Doutora, eu vou ser muito sincera. Eu enfiei a mão nele, e enfiei com gosto. Bati até cansar, meti logo um chute no meio das vergonhas e quando ele caiu no chão eu chutei muito mesmo, gritei, chorei feito uma Maria-louca, não vi nada na minha frente. Mas eu juro: não apontei a faca pra cima dele. Isso que ele veio aqui falar pra senhora, esta conversa de ameaça de morte não é verdade, doutora. Não com o amor que eu tinha por aquele maldito ingrato.
É verdade: Eu bati e bati muito. Mas longe de ameaça de morte. Na quarta-feira doutora, quem morreu fui eu.




Para minha querida prima Lívia, futura doutora. Te desejo boas provas, e muitas histórias envolventes.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Dia da Mentira

Rio de Janeiro, 1 de abril de 2011.

Caro Senhor Deus,

Venho através desta comunicar-lhe do fato de que decidi me regenerar.
A partir de hoje não mais irei aos bairros boêmios, não mais circularei com amizades de comportamento subversivo ou duvidoso. Garanto que não saberás de mim nas rodas de samba, nada mais de suor nem de batuques, muito menos de violão (isso nem de longe). A partir de hoje abandono botequins, bebidas alcoólicas e cigarro, conversa fiada, vadiação, rodas de capoeira. Não mais saberás de mim pelas quebradas, e assim serei uma mulher mais digna e feliz, de recato e bom tom, bons empregos e costumes. Inclusive pretendo muito breve arranjar um bom casamento e constituir família católica e nuclear. Desejando que me perdoes os fracassos, a partir deste dia, Senhor, me regenero.

Iara C. de Souza Ferreira.