Foi claro o instante em que ele se perdeu. Eu sei, pois estava lá.
Eram quase seis da tarde, dia caindo num sábado de sol. A patota toda no Bar do Gomes. Chegou cambaleando pelos trilhos, mas ainda não bebera. Estava trôpego mesmo assim, carregava uma mochila pequena como quem carrega uma cruz pesada. Vestia um short meio velho, uma camisa desbotada e tinha uns olhos verdes de fazer inveja à Natureza. Mas os olhos estavam encharcados.
Eu o reparei, pois era bonito de dar gosto. Magro, cheio de dentes brancos, uma cabeleira castanha. Mas hoje penso se não poderia eu tê-lo salvado naquele momento se não fosse este mundo tão besta, as pessoas tão despreocupadas das outras, que injustiça. Tivesse eu chegado perto dele e dito: “Olá meu irmão, meu parceiro de jornada. Vejo teus olhos tão tristes, quase posso sentir tua dor. Vem cá que lhe ofereço meu afeto de graça, vem cá que minha mãe Osùn me ensinou a ser carinhosa, pode chorar em meu ombro, pode confessar tua mágoa que eu lhe dou em troca minha amizade. Somos irmãos de jornada, afinal.”
Mas não. Eu apenas o observei, uns quatro meses atrás.
Entrou no bar, comprou uma garrafa de cachaça. Saiu sem olhar ninguém, sentou-se na sarjeta afastado da multidão e bebeu a garrafa toda de uma vez, os olhos verdes estáticos, quase extáticos. Ali permaneceu por dois dias e duas noites, em silêncio. Tornei a vê-lo algumas semanas depois. Reparei no quanto vinha sujo e que certamente tinha levado uma surra. Mas já estava falante, falava até demais, incomodava, pedia cigarros aos passantes que um pouco amedrontados o mandavam embora. Profanava à Deus e o mundo. Começou a ter alucinações militares, a chutar cachorros, enlouqueceu.
Sem entender eu perguntava às pessoas o que havia se passado com o rapaz. Eu não conseguia acreditar no que estava vendo acontecer e uns diziam que era porque devia usar muita droga, outros que ele sempre fora assim, maluco. Mas um ex- vizinho dele me disse que foi amor.
No dia em que ele se perdeu, havia sido expulso de casa pela mulher. Se batia nela, ou a havia traído eu não sei. Se era um amor bonito ou bandido, com história de horror ou romance, ninguém soube informar. O que há entre os casais, fica sempre apenas entre os casais e só eles sabem do que é ou não verdade. Aliás, muitas vezes nem mesmo eles sabem do porque do fim. Às vezes mesmo havendo amor não é possível ficar junto e em outras, mesmo havendo um grande amor, outro amor está escondido numa trincheira do caminho.
Como me dói a imagem deste rapaz, que apelidei em meus pensamentos de Inocêncio. Como me dói não ter feito nada por um semelhante, que padecia da dor mais banal e pior do mundo. Como me doeu na semana passada, quando ele me pediu um cigarro e eu dei, recebendo como resposta uma apunhalada: “Se a moça precisar de qualquer coisa pode contar comigo, viu?” E saiu correndo entre os carros.
Todos no bairro já aprenderam a conviver com ele. Estamos todos assistindo à sua morte, é fato. Outro dia se jogou na linha do bonde e não havia quem conseguisse o tirar. Deu agora para ser violento. Até o Pinel já chamaram, mas não há quem dê jeito de convencê-lo a sair da rua. De tantas surras já perdeu os lindos dentes, anda ranhento, fede, não tem mais nada de seu.
Hoje pela manhã, quando o encontrei de novo e foi insuportável a cena de desolação, cheguei mais perto para ouvir o que ele rezava em voz sussurrada, na esperança de oferecer-lhe um abraço. Meu Deus, como pode? Baixinho ele dizia, embalando seu próprio corpo largado ao chão como quem embala a toda a divina criação: "Pára, por favor. Pára, coração...".
Eu sei porque estava lá, eu vi o dia em que Inocêncio, ainda vivo, morreu de amor.
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