quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Acalanto ( ou - "A Mulher de Cada Porto")

Permita-me amor, roubar de ti apenas a tristeza dos olhos. Usar e abusar dos jargões, que cantam que beberei tuas lágrimas, que serei teu raio de sol, que terás em mim teu porto. Permita-me romper teu peito num beijo, adentrá-lo com ternura e lá dentro fazer morada. Não, meu bem. Eu não aguento te ver sofrendo assim. Acredita quando te digo que de nada vale se ferir tanto, que a vida é dura mas é tudo que temos. É tudo e vale a pena, ora se vale. Eu te empresto se precisar de uma gota ou rio de fé, de esperança. Um pouco de misticismo e crença, já que eu tenho de sobra, posso te dar. Já que rezo todos os meus dias pelos seus, para que sejam mais amenos e que não seja nunca nosso amor um fardo pesado que te una à Terra, mas sim aquilo que te eleve aos Céus. Deixe-me ser teu anjo! Ouve o que dizem aqueles dois carinhosos amigos, aquele amável casal de sabiás, caso não queira me ouvir. Todos nós, eles e eu, só trinamos assovios de que tudo - com boa dose de carinho - melhora. Fica assim não, muda de atitude em relação à si mesmo antes do mundo. Surpreenda este mundo. Recorra a mim se for preciso um pouco de coragem, que eu te mostro quem é aquele que me cativa e que você não vê no espelho. Aquele para quem você insiste em negar os olhos de afeto. Toma as rédeas deste cavalo selvagem em disparada que é a vida, que corre tempo desembestado mas nos dá o direito de gozar do imenso prazer do vento nas crinas, do ar enchendo os pulmões, dos cheiros esverdeados das matas. Ainda que nos lasque o casco e sejam ponteaguadas as pedras da estrada. Que às vezes canse, ou seja vital pedir àgua. E se for preciso, recorra a mim, coração! Que eu te ensino como se monta rédea, como se laça bicho e qual é o verdadeiro perfume e gosto de um cavalo suado. Eu te dou de beber. Descanso uns instantes e te espero. Até bebo contigo. Vem cá meu menino, se entrega ao meu colo de mulher. Ou se for preciso, recorra a mim para que eu te doe um pouco de infância que ainda me resta, sorrisos ingênuos de quem não entende e por isso se diverte. Mas sem ignorar. Mas sem fingir. Tem pressa não, nem medo. Eu estou aqui.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Delírio Gitano

Deixe-me assim, que eu me levo pra longe. Eu possuo o terrível e imutável hábito dos ciganos, de viver nas estradas, de paixões incendiárias e de, por amor, roubar criancinhas. De chafurdar como os porcos na lama, de engolir diamantes e vender falsas pedras preciosas. Possuo o hábito intenso e efêmero das fogueiras. Deixe-me assim para que eu esqueça, para que meus olhos não contenham mais os seus e seja em breve outro o cheiro que me habite. E ainda que retorne seu cheiro depois de tanto tempo, e re-grude em mim, seja apenas um cheiro passageiro de flor, ou de amor passado, ou de desejo inoculado. Seja um cheiro de lar, que mesmo os ciganos cultivam a cada acampamento. Sempre haverá este cheiro de casa, este cheiro de acalanto, do qual já fiz e farei a minha esteira e o meu lençol. E do qual para sempre precisarei sentir saudade, invenção gitana para milongar beira-fogo. Desprendo-me assim porque se faz necessária a solidão encorajadora das estradas. Nesta noite eu tive um sonho, deslizava por pedras escorregadias, ardósias, me arrastava por elas de barrigada, de quatro, ralava os joelhos, mas não me feria. Divertia-me, ao contrário, dos arrepios do medo e da escuridão chuvosa que tanto temo. Deixe-me assim, que eu me levo pra longe. Eu possuo o terrível e imutável hábito dos ciganos, de vestir-me de luxo e sujeira, de rodar a saia vermelha. De rosas, de medalhas. Eu leio nas mãos de outros o destino que me carregará para a próxima parada, menos importante onde e mais importante como. E quando, que é sempre o dia em que o solo se esgota, a colheita termina, ou que não restam mais ouvidos para a misteriosa música dos bandos de amantes da lua cheia. Eu vou junto do ritmo lunar transmutar-me em outra, mudar de nome e de cabelos, contar outra história sobre mim e sobre todos os mil homens que amei até agora. Deixe-me assim, eternamente um vir a ser. Pois o que sou hoje é vento e fogo, semente e terra, que amanhã - disse-me o oráculo do tarôt: serão flores e violões. Os mais exóticos frutos tropicais.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Útil Paisagem

Embora do lado de dentro haja carvão, escombros e esperança, do lado de fora, com seios de Pão-de-Açúcar há uma mulher deitada. Paciente, espera uma criança. Tudo aquilo que o fogo lambeu será refeito: tábuas, máquinas,acúmulo de papéis. E ainda ali fora restará a mulher deitada, cabeça de lado, gerando sempre daquela barriga uma beleza de paisagem. Se por dentro da casa tudo ruiu em aparência, lá fora nada vai se modificar. A natureza é maior que os homens, ela paciente me diz que enquanto centenas de casas ruirem, vidas passarem pela Terra, famílias forem criadas e aniquiladas, pássaros forem extintos, mil Natais, mil festas de Ano-Novo, mil Páscoas e Carnavais passarem, ainda estará aqui. A natureza ensina que a paciência é irmã da beleza. Veja aquela mulher ali deitada sobre a Guanabara, o rosto de braço-de-terra, os seios de Pão-de-Açúcar. Gera a barriguda a beleza da paisagem deitada e descansada, assim como do outro lado também o faz o Gigante Adormecido. Tão calmos e pacientes em seu sono mineral. Tão belos. Viram há muito aparecerm os prédios, bondinhos, favelas. Foram violados por estradas, sofreram. A mulher hoje deita numa àgua suja e podre, que já foi a moradia mais azul de Iemanjá, mas ainda assim, assitem à tudo impassíveis e descansados, como quem em sua sabedoria apenas espera a hora de ver tudo mudar, numa onda imensa que vai vir e transformar as coisas repentina ou vagarosamente, onda do mar ou de consciência. Paciência, porque tudo isso passa num raio de segundo para a natureza. Nós passamos em menos de um raio de segundo. Paciência e sangue, e beleza, e alegria porque um dia se abre os olhos e se está do outro lado da natureza, olhando tudo de cima, ou do fundo das àguas da Guanabara. Paciência e força. E coragem. Para dormir o sono pesado e inabalável das pedras. Para acordar de dentro para fora para a beleza da útil paisagem.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Pitiatismos de paixão

Sorrindo ainda macio
Com teu beijo em meu olhar
Subo o primeiro degrau,
Fecho o portão devagar
Nem bem me somes da vista
E a saudade desata queimar!
Muitas vezes foram assim
Entretanto fazia um tempo
Pois já custa saber de mim!
E agora este atrevimento:
Antes que eu virasse a chave
Entrasse em casa aos suspiros,
Alguns segundos antes disso
Já sonhava meu corpo contigo!
Como pode uma paixão
Vir assim, abestalhada
Sem contexto ou condição
No coração montar guarda
E ir gostando, ir ficando
Até por fim se aconchegar
Ao ponto da última noticia
(Que nem eu pude acreditar)
Diz-que agora só sei sorrir
Na hora de você chegar...

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Pássaro Noturno

Cinco e vinte da manhã. Já devo estar acordada rolando na cama há uma hora. Me despertou primeiro a boca seca, demorei a levantar, bebi dois copos de àgua. Ao voltar à cama um canto rompe o silêncio profundo, é um pássaro da noite. E o seu canto persiste, alto e agudo como o apito de um guarda, como um eco de ribanceira. Há ainda um ruído que vem da cidade, do centro. Mais parece o mar, engraçado. Lembro-me dos bons tempos de beira-mar, que quando revolto bradava noite adentro e também costumava me levar o sono. É alta madrugada, dorme o Rio de Janeiro em seu falso sono de paz. É alta madrugada. Respiram melhor os bêbados, se aconchegam os casais nos lençóis, chora uma criança já desperta, esperam acordados nas camas os velhos, que se deitam cedo e acordam mais cedo ainda por não terem mais paciência nem para viver, nem para dormir. Tenho medo deste momento da velhice, o momento de perder o sono, como agora. Contudo hoje não sinto medo, porque estou acompanhada deste papel que deve rolar pra lá e pra cá por uns dias, me lembrando que enquanto persistir o desejo de escrever, eu também existirei. Este papel é a prova de minha existência na madrugada, de que ainda que durma, eu vivo, e que ainda que perca o sono, tenho algo para fazer e isso me socorre.
Agora já se anuncia com um fraco canto um pardal dos primeiros raios de sol. Logo serão muitos, cantam fraco porque sempre em bando, são os portadores da voz da manhã. Me arrepia pensar no dia que virá.
"Sol, eu que sou devota de ti e de tuas flores, te peço, não venha hoje. Deixe que a noite imensa me abrace por mais vinte e quatro horas, permita que eu apenas adormeça e sonhe com coisas boas..."
Pedidos inúteis. O dia já começa a raiar, os pardais somam-se aos primeiros riscos de luz no horizonte. Vem aquele frio da manhã e agora é tarde para voltar a dormir. De tão cedo, é tarde - oxímoro estúpido. Apitou uma fábrica, passaram um carro e uma moto. O guarda da rua apita também o início da partida, juíz do dia.
Será que já posso fumar um cigarro? Terei coragem de largar estas folhas e fazer um café com gosto de manhã? Despir-me da noite, da camisola, das ramelas, e encarar mais um dia que passará à tôa, uma quarta-feira que nem é começo nem fim, assim como a madrugada, que não é começo nem fim e por isso é apenas um não-lugar onde nada deve acontecer, mas acontece.
Acontece que eu perdi o sono porque me vêm imagens, lembranças e os ruídos são mais meus que da cidade ou dos pássaros. Dia! Pela última vez se arrependa de pintar o céu eu te peço, não venha! Guarda teu ímpeto de colorir e permite que fique a negra noite por mais vinte e quatro horas! Ou, se inevitavelmente tiver que amanhecer, que eu adormeça por mais alguns minutos, a tempo de tirar de mim a madrugada.