domingo, 4 de dezembro de 2011
"Doutor, eu não me engano..."
Quatro de dezembro, Rio de Janeiro. Dia de Iansã e Santa Bárbara, dia da decisão do campeonato brasileiro de futebol de 2011.
Na Cidade Maravilhosa desde quarta-feira todo mundo já parece estar em clima de final, os bares perfeitamente cheios, as apostas e provocações, as camisetas dos times levadas nos ombros por já estarem molhadas de suor, fazendo com que desfilem os morenos pelas ruas pra lá e pra cá, pele à mostra, tirando o sossego da gente. Futebol, fim de ano e verão. (Um clima bom da moléstia...)
Tudo corria para ser mais uma final memorável, o Vasco concorrendo ao título após uma campanha de sucesso como não havia há tempos no time. Mas ficou ainda mais memorável porque na manhã de hoje, antes mesmo de serem iniciados os preparativos do almoço de domingo, veio pelos jornais e canais de TV a triste notícia da morte de Sócrates, o Doutor. Bradavam a morte de um craque, um gênio do futebol brasileiro, e - até eu que não entendo de futebol sei disso - um dos últimos representantes de uma era de ouro no esporte mais aclamado do Brasil. Magrelo, bêbado, chegado à samba e à comunismo. Um herói brasileiro típico, Macunaíma, torto. Destes que a gente gosta de cantar.
Desencarnou nesta madrugada padecido de uma cirrose. Antes do sol chegar foi carregado numa cerimônia festiva pelos braços de Iansã, que além de ser a dona dos mortos é também dona do vento e dos lampejos, tempo e idéia, os mesmos impulsos de criatividade e genialidade que fizeram deste homem um doutor aos olhos de um país que tem no futebol talvez o mais importante símbolo nacional. Coladinho ao samba, que no fim é tudo fruto da mesma coisa, da paixão e da raça, do suor.
Mas é dia de final, e a tristeza só aumenta a gana. No Rio tem Flamengo e Vasco, em Sampa Corinthians e Palmeiras. Só clássico. Dizem que o homem era corinthiano. Gaviões, Camisa 12, Pavilhão. As torcidas pintam o estádio de preto e branco, representando a dualidade das coisas, os momentos bons e ruins, a vida e a morte. Porque quem tem veia de maloqueiro sofredor bem sabe que vida é assim, que hoje tem, amanhã não (tá ligado?). O bagulho é doido e o processo é lento. Um minuto de silêncio em nome de Sócrates, e há milhares de punhos fechados, erguidos aos céus em sua homenagem. Vai com fé, Sócrates, que hoje vamos todos beber em teu nome. Que hoje o Coringão não perdoa, vai ter porco assado e torresmo de petisco, no caso de o Mengão não preparar o bacalhau.
E nada de gol. As bolas ocas no placar parecem dizer que ninguém tem o direito de manchar o nome e a glória daquele que mandava até de calcanhar. Em torneio de pontos, mais valia um zero a zero. Nenhum gol feioso ou meramente técnico valeria a pena, deixa assim. Deixa no zero a zero que com Sócrates já ficou combinado e é na base do tudo ou nada.
Termina a partida no Rio e em Sampa já deliram os gaviões. Frenéticos por uma vitória sem gols, apenas mais uma pra confirmar a controvérsia das coisas. É o preto e branco na avenida, com pancadaria, cartão vermelho e o cacete, do jeito que os corinthianos gostam, muita gritaria e muita emoção.
E eu achei lindo e engraçado, ao ouvir os fogos e o auê da rua, aquele grito que subiu com o vento de Oyá e entrou pela janela, pois me pareceu como um sopro em coro, uma só voz independente de times, de estados ou partidos. Parecia uma só voz macia a cantar aquela velha marchinha de carnaval que sem querer prestava a sua homenagem singela: "Doutor, eu não me engano... O coração é corinthiano... "
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