terça-feira, 9 de junho de 2015

REGRA N. 5

REGRA N. 5

É imprescindível caminhar de manhã. Mas atenção: não falo das caminhadas atléticas, tampouco de corridas suadas, de fones de ouvido e concentração na respiração, com coração agitado e cabeça desanuviada (estas são também muito boas e servem especialmente para momentos quando se tem necessidade de alienar a consciência do mundo e espairecer, além do evidente treino atlético). Falo de caminhadas engajadas em funções cotidianas, aquelas que nos pedem atenção às personagens e nos requerem negociação e tato. Aquelas que nos exigem algum interesse simples e besta, como levar um par de sapatos velhos, porém estimados, para a feitura de uma meia-sola, ou a compra de uma nova borracha para a panela de pressão.
Sim, melhor se for uma caminhada com intenção de recuperar velhos objetos de reduzido valor material, mas com algum valor afetivo. Objetos que falem do quanto tem caminhado ou de quanto feijão não vem faltando em sua mesa.
É especialmente essencial após realizar a primeira das tarefas quaisquer as quais se propôs, flanar alguns minutos interessado e atento aos sinais da rua. Não importa se você mora no bairro do Tola Cavalo ou em Copacabana. A rua possui suas próprias vontades e lógica, a calçada é o espaço do liminar, daquilo que por não ser nem deixar de ser é justamente livre o suficiente para nos oferecer as mais diversas oportunidades de transformação do dia, da semana, ou na melhor das hipóteses, de uma vida toda.
Flanando, possivelmente se encontrará um vendedor de panos de prato, de ventiladores portáteis, ou – no caso do Tola Cavalo – um vendedor de esterco ou uma cigana. A não ser que as entidades sejam pássaros, que te interpelarão quer queira quer não com seu canto matutino, quase sempre serão vendedores, terão coisas a oferecer.Vale sempre barganhar e levar. Aceitar o destino que a rua sugere, aquele destino no qual quase se tropeça, é tão desimportante quanto rico e isso só se pode compreender nestas caminhadas de manhã. Por fim, encontrará possivelmente uma vendedora de livros usados, onde estará te esperando imóvel, envelhecido e desprezado por outrem o novo livro mais importante da sua vida. Dispense com ele as últimas moedas sem dó nem apego, pois está mais que posto que “antes na livraria que na farmácia”. Este livro talvez guarde a cura de teu espírito sofrido de poeta, que bem sabe que não pode se deixar abater. Afinal, com quem a tristeza e a melancolia contarão senão contigo? É parte primordial dos ossos de teu ofício embelezar as desilusões, verter leite das pedras e colorir os sentimentos mais feios e mesquinhos que a humanidade criou (além de usar de palavras que signifiquem além de si mesmas - para retomar esta questão, releia as Regras 1 e 2).
Por fim, retorne calmamente para o lar sob o sol morno e claro do Outono e sinta gratidão por estar vivo. Se este manual chegar a tuas mãos em qualquer outra estação, sinta a mesma gratidão.  Se o lê, continua vivo.

REGRA N. 6