Atracou o barco, optou consciente por laçar um nó final de pescador (tornara-se exímio na arte de dar nós), mas escolheu um tipo bem simples e eficiente, que quanto mais se puxa, mais aperta. Fim de expedição, adeus oceano imenso.
No cais do porto um cego rabequeiro tocava o Assum Preto, tão triste, tão bonito. Tentou se lembrar de quando tinha sido a última vez em que ouvira aquela música, mas não conseguiu. Não conseguiu se lembrar nem de quando havia sido a última vez que tinha ouvido música de instrumento e não de passarinho. Surpreso, se lembrou que passarinho fazia piado, gente é que fazia música. Tinha muita coisa por reaprender, ou ao menos relembrar.
Agora era retomar a vida em terra firme.
Recolheu uns pertences e uma imagem de Iemanjá. Assim que chegasse em casa e ajeitasse melhor as coisas, viria buscar o restante. Adeus meu barco, minha casa, meu amigo. Adeus solidão das marés. Primeiro degrau e uma pausa antes de descer. Era como se todo o seu corpo continuasse se movendo involuntariamente junto das ondas do mar. O vaivém de tantos anos devia ter adentrado em seus músculos, teve que se segurar ao corrimão, como um velho. Um velho lobo do mar. Muito tempo se passara de fato.
As filhas, como estariam? Sabia que tinha ganhado também uma neta, ficou tão feliz e ansioso por conhecê-la. A chegada da netinha era na verdade o maior motivo do retorno... De suas meninas tinha saudade, claro que sim, mas era uma saudade remota de nostalgia, saudade de quando eram pequenas, indefesas e tinham somente em si o porto-seguro. Eram lindas, duas princesas. A mais velha morena, com o nariz adunco como o seu e a mais nova delicada e bondosa como a mãe. Igualzinha à mãe. A saudade o remetia a um tempo que já tinha ficado pra trás. Quanta água já rolara desde então.
Quando de sua partida, numa tentativa de se manter presente, instalou modernos aparelhos que lhe haviam custado uma fortuna implantar na embarcação. Hoje já estavam obsoletos, mas ainda funcionavam com perfeição apesar da maresia prolongada, eram prova as mensagens que recebia das mulheres que deitava em cada porto, umas preocupadas, outras sonhadoras. Mas de suas meninas, jamais tornou a receber as mensagens de carinho. Quando partiu planejava apenas um passeio pela Costa Verde, onde encontraria com uma amante menina, uma bonequinha de origem oriental. Já não ia bem das pernas o casamento, mas ainda assim, sendo homem de muitas posses, mantinha a casa e as aparências impecáveis. Jamais deixou vazar notícia sobre seus casos.
Era dia de revolta no mar, aquele dia em que soube que sua esposa havia falecido. Iemanjá havia mandado ondas gigantes e não conseguira atracar na costa. Estava sozinho e apavorado, porque não trouxera consigo marujo ou qualquer outra pessoa, para manter as tais aparências. E agora revolta em alto mar. O moderno aparelho de mensagens apitava sem parar, mas não conseguira fazer contato, estava sozinho com aquele mar imenso, com aquele castanho claro de água fria em revolta. Oito horas se passaram, perdeu o prumo, o barco ficou à deriva. Quando conseguiu tomar novamente ciência das coisas, o recado que dizia: “Sua esposa acaba de falecer. É urgente retornar.”.
Leu a mensagem umas trinta ou quarenta, ou duas vezes. Não podia se lembrar ao certo. Mas lançou-se ao mar e boiou por longo tempo, na calmaria de depois de rebuliço. Pensava em suas meninas, o que seria delas agora? Pensava em voltar e se deparar com a tristeza em seus olhinhos, insuportável. Não, ele não ia conseguir. Era forte de corpo ainda então, mas tinha um espírito muito mole, um coração fraco. Morreria ao vê-las tão tristes, e num ato de egoísmo, resolveu não mais voltar. Em seus pensamentos, após tantos anos (quantos seriam?) muitas vezes havia brigado, feito as pazes, discutido com aquelas memórias. Estava certo de que as filhas já haviam o perdoado, o tempo e as memórias tinham sido complacentes consigo, tinham amenizado as dores, tinham estreitado os laços, desfeito os nós.
Já era hora de voltar.
Se bem se lembrava do caminho, ainda com certa dificuldade de caminhar em terra, iria a pé. Não era muito longe dali da marina. Um velho marujo o reconheceu, com uns olhos de quem vê assombração. Sorriu pra ele: “Bem vindo de volta, velho Lobo do Mar”.
É verdade, estava velho. Penou muito mais do que outrora a caminhada até o portão de casa, a mesma cerca já puída, ia dar um jeito naquilo. Caminhou pelo extenso jardim devagar como quem degusta a iguaria de um bom vinho, as memórias como flechas lançadas pelo tempo, surgindo na mente e esvaindo-se com a mesma rapidez, as memórias se fazendo presentes. Viu a Mangueira, o Jasmim-Manga, o Jasmim-Trepadeira, o Manacá-da-Serra, todas aquelas coisas da terra, da raiz do chão. Parou perto do lago artificial, olhou para dentro de casa e viu uma menina linda, cheia de cachos, e imaginou ser a sua caçulinha, seu neném. Mas a mulher que chegou e pegou aquela criança no colo, quem seria? Pelas barbas do Profeta, era ela sua caçula. E a menina dos cachos, era então sua netinha. O tempo e as imagens brincavam de ir e vir, como flashes de vagalume na noite escura, brincando de pisca-esconde. Não concordavam. Bambeou. Voltara para o mar ou ainda se mantinha ali em pé? Estava chegando ou saindo para viajar? Muito tempo se passou, estava velho. Falência múltipla dos órgãos, diriam os médicos depois. Falência múltipla das histórias, dos conceitos, do tempo. O tempo, o tempo.
Com os olhos mareados, voltou caminhando devagar ao portão. Era mesmo na solidão que deveria se manter, já não pertencia ao mundo dos iguais. Suas meninas eram melhor sem sua presença. Jamais deixaria que nada faltasse, nunca. Dinheiro nunca lhe fora problema, tinha muitas posses. Demandaria de alto-mar que alguém viesse e consertasse a cerca.
Voltou ao cais do porto, fez reverência ao marujo, seu velho amigo. O rabequeiro agora tocava Maracangalha: “Eu vou só, eu vou só...”. Apertou os ouvidos para guardar em si aquela imitação de passarinho que os homens fazem com instrumentos.
Voltou ao mar para nunca mais, deixando em terra seu tesouro.
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