sábado, 31 de outubro de 2015

Cantiga do Amor Enfim

Para Glauber Seixas


O primeiro sol da manhã
Mar sereno sob o luar
Uma chuva boa que chega pra semente desabrochar

O suspiro manso do rio
No instante de desaguar
O orvalho descendo à terra pelas mãos da brisa no ar

Todos versos que jamais fiz
Pois não saberia rimar
Uma imensidão estrelas na centelha de um só olhar

O amor que nunca se viu
Mas que muito se ouviu cantar
Ilumina a minha vida desde que enfim chegou para ficar.

terça-feira, 9 de junho de 2015

REGRA N. 5

REGRA N. 5

É imprescindível caminhar de manhã. Mas atenção: não falo das caminhadas atléticas, tampouco de corridas suadas, de fones de ouvido e concentração na respiração, com coração agitado e cabeça desanuviada (estas são também muito boas e servem especialmente para momentos quando se tem necessidade de alienar a consciência do mundo e espairecer, além do evidente treino atlético). Falo de caminhadas engajadas em funções cotidianas, aquelas que nos pedem atenção às personagens e nos requerem negociação e tato. Aquelas que nos exigem algum interesse simples e besta, como levar um par de sapatos velhos, porém estimados, para a feitura de uma meia-sola, ou a compra de uma nova borracha para a panela de pressão.
Sim, melhor se for uma caminhada com intenção de recuperar velhos objetos de reduzido valor material, mas com algum valor afetivo. Objetos que falem do quanto tem caminhado ou de quanto feijão não vem faltando em sua mesa.
É especialmente essencial após realizar a primeira das tarefas quaisquer as quais se propôs, flanar alguns minutos interessado e atento aos sinais da rua. Não importa se você mora no bairro do Tola Cavalo ou em Copacabana. A rua possui suas próprias vontades e lógica, a calçada é o espaço do liminar, daquilo que por não ser nem deixar de ser é justamente livre o suficiente para nos oferecer as mais diversas oportunidades de transformação do dia, da semana, ou na melhor das hipóteses, de uma vida toda.
Flanando, possivelmente se encontrará um vendedor de panos de prato, de ventiladores portáteis, ou – no caso do Tola Cavalo – um vendedor de esterco ou uma cigana. A não ser que as entidades sejam pássaros, que te interpelarão quer queira quer não com seu canto matutino, quase sempre serão vendedores, terão coisas a oferecer.Vale sempre barganhar e levar. Aceitar o destino que a rua sugere, aquele destino no qual quase se tropeça, é tão desimportante quanto rico e isso só se pode compreender nestas caminhadas de manhã. Por fim, encontrará possivelmente uma vendedora de livros usados, onde estará te esperando imóvel, envelhecido e desprezado por outrem o novo livro mais importante da sua vida. Dispense com ele as últimas moedas sem dó nem apego, pois está mais que posto que “antes na livraria que na farmácia”. Este livro talvez guarde a cura de teu espírito sofrido de poeta, que bem sabe que não pode se deixar abater. Afinal, com quem a tristeza e a melancolia contarão senão contigo? É parte primordial dos ossos de teu ofício embelezar as desilusões, verter leite das pedras e colorir os sentimentos mais feios e mesquinhos que a humanidade criou (além de usar de palavras que signifiquem além de si mesmas - para retomar esta questão, releia as Regras 1 e 2).
Por fim, retorne calmamente para o lar sob o sol morno e claro do Outono e sinta gratidão por estar vivo. Se este manual chegar a tuas mãos em qualquer outra estação, sinta a mesma gratidão.  Se o lê, continua vivo.

REGRA N. 6

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Querer Demais

Não estranhes eu te querer demais
Guardei por ti noites intermináveis
Cantei por ti tantos boleros de amor
Esperei imersa em silêncio e desejo
É por isso que tremo, não tenhas pena
Estes calafrios são estrelas na pele
São fogos de artifício: Sim, estou alegre!
Embora doa, docemente.

Não te afogues agora em meus seios
Enquanto te aperto, desfeita em soluços
Não seques meus olhos com tantos beijos
Deixe – me chorar, estou alegre!
Estas lágrimas são o antídoto e o soro
Da falta imensa que me fizeste. 

Não estranhes eu te querer demais,
Eu tenho por ti um calmo desespero
Que só passará com tua longa estada
Que só passará com tua enfim estada
Maior que a tua longa ausência,
Maior que a carência que cultivei de ti
Por todo este tempo, por todo este hiato
Por toda uma vida em que não te esqueci. 



terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Outra vez, Ano-Novo.

Hoje é domingo. Há mais de dez dias um ano novo começou. Bela bosta, ano novo. Pros judeus não é ano novo, por exemplo. Nem para muitos índios.
Acordei cedo demais para o tamanho do meu sono, olhei pro alto da varanda e vi uma borboleta cruzar no espaço com um urubu. É claro que eles estavam a muitos metros de distância celeste um do outro, mas eu ainda estava grogue e meus olhos demoraram a ajustar o foco, naquele ardente exercício de controle imagético que nos obriga a apenas duas dimensões. A borboleta era linda, mas o urubu parecia mais feliz, voando longe, altivo. Pensei que é urgente alargar os horizontes (além de mandar fazer as benditas lentes novas para os meus óculos). 
Como ia dizendo, acordei há pouco de um porre fenomenal. Casamos e bebemos ontem à alegria de um rei e uma rainha Nagôs em grande batucada. A nossa turma quando ferra a beber num boca-livre não é de brincadeira. Como resultado, ainda não é nem meio-dia e já fumei dois cigarros para duas xícaras de café preto sem açúcar. No último gole entornei de vez minhas promessas e expectativas deste ano novo quando, se Deus permitir, farei trinta anos. Puxa vida, como eu imaginava tudo diferente... Mas até que ando muito bem para quem até hoje só fez o que lhe deu na telha e no coração. No mais são as marcas do sol e da estrada, que vão ficando cada vez mais fortes e menos pesadas. Sinto-me cada dia mais perto da natureza.
O mundo está em guerra como sempre, a economia vai mal como sempre, o calor está pior que nunca e continuamos trabalhando duro. “Sambando na lama e salvando o verniz”, como diria o Chico, mas sem toró. Não cai uma boa chuva há tempos. Dizem que agora acaba a água do planeta de vez. Tomara que não! Planetinha tão lindo, tão amado... Por via das dúvidas, tenho economizado o quanto posso, já que é difícil resistir ao chuveirão da varanda. O Rio parece que vai derreter e como diz a Gigi, daqui a pouco vão ter que baixar um decreto proibindo o povo de sair às ruas do meio-dia às duas. Quem dera alguém se preocupasse tanto assim conosco.  Continuamos trabalhando pesado, os artistas e humanistas carregando pedras de sol a sol.
Falando assim até pode parecer que eu tenha perdido totalmente as esperanças na vida e no amor. Não é isto, é só ressaca. Tem muita gente boa à solta por aí. Os meus poucos amigos verdadeiros, por exemplo, são pessoas de alta periculosidade em amor, arte, generosidade,companheirismo, entre outras coisas estranhas a este mundo de hoje.
Talvez 2015 seja um ano bom. Ouvi dizer que será regido por Xangô, o Rei justo. O Carnaval vem mais cedo e mais uma vez quero fugir para a roça. Talvez não consiga de novo, inebriada pelo brilho tolo das lantejoulas e pela ilusão de que dá tempo de deixar o ano começar daqui a mais um mês. Sou uma festeira irremediável, putzgrila. 
Ando perdidamente apaixonada pelo Ítalo Calvino e suas “Propostas para o novo milênio”, aonde já nos encontramos pelo décimo quinto ano, agora. Somente na literatura a vida se organiza como deve e as idéias caminham em tempo ideal, pairando eternamente fixadas no texto, fazendo ser sempre tempo de pensar e repensar. Calvino me dá tanto prazer na leitura que no fim do ano passado cheguei à um nível de antropofagia (e desespero com o fim do ano) que tentava ler três obras suas ao mesmo tempo. “Absurdo” - me disse outro bom amigo: “o fim do ano não é o fim dos tempos...”. Recomecei uma por uma de novo, ele estava certo. Penso que tampouco o começo do ano deve ter que ser o começo dos tempos, onde tudo se transforma, a vida ressurge das cinzas e num passe de mágica o mundo fica bom, as contas são zeradas, e tudo o mais.Quem dera. Mas se é uma desculpa a mais para sonharmos, qual o problema também?
Olhei pro céu e vi um lindo bando de urubus rondando e comendo a carniça do passado. Éramos nós. Bela bosta. Na natureza tudo se transforma.