segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Sete Cordas

Não tenho nenhuma intenção (ou medo) de parecer piegas ou triste ao relembrar aqui pessoas que já fizeram sua passagem desta Terra. Justamente porque falo de emoções lindas, boas e que renderam à minha vida muita poesia.
Um amigo me lembrou que hoje é a data de aniversário de Raphael Rabello, este grande menino que se ainda estivesse por aqui, faria hoje 49 anos. Minha experiência com a obra de Raphael é ainda crescente, cada vez conheço e gosto evidentemente mais de suas composições e também cada vez mais adquiro competência para compreender seu violão. Quero dizer, ganho ouvidos. Competência mesmo, não possuo qualquer.
É bom poder relembrar esta data feliz de quando o Brasil ganhou Raphael, que nasceu sortudo numa família musical e grande, de personalidades marcantes como a sua e de onde retirou sua coragem e dedicação para tornar-se um de nossos maiores violonistas de todos os tempos. Quando a família é grande e unida, parece que a força se multiplica.
E foi sobre família, amor e aprendizado, que me lembrei hoje quando dei conta de que Raphael aniversariaria. Eu ainda era bem menina quando ele partiu. Mas me lembro perfeitamente do dia, da hora do almoço, quando pela primeira vez em toda a minha vida até então, eu ví o meu pai - amante de música e em especial de violão - chorar em frente à televisão.
Eu me lembro que não entendi nada, achei que ele estava brincando e tentei animá-lo com cócegas. Não me lembro de tê-lo visto chorar antes disso.
Mas como ele não parava e estava muito emocionado, sentei ao seu lado no sofá e perguntei:

- "Pai, por que você está chorando ? " - Já eu começando a chorar também, louca por ele que sou desde sempre.

Só sei que o ouvi responder que naquele dia a gente tinha perdido o maior violonista de todos, o que ele mais admirava. Tinha comprado um CD novo do tal rapaz, e colocou para tocar bem alto no carro, enquanto me levava para a escola:

- "Ele se chamava Raphael Rabello, filha. É este aqui da foto".

Depois disso ví muitas vezes meu pai chorar, talvez tenha sido o dia em que descobri que ele também podia ficar triste. Acho até que quanto mais ele amadurece, melhor fica do coração, porque se emociona e chora hoje com liberdade, ainda mais pelas coisas felizes. E daquele dia, só me restou pra sempre a impressão de que o amor de meu pai por aquele rapaz era uma coisa meio paternal, como por mim. Ele botava muita fé no menino, sentiu sua perda. Volta e meia, quando hoje eu pego seu carro para rodar pela cidade, é a Raphael que gosto de ouvir também, como uma tradição emotiva que se cria.

Que bom que Raphael nasceu, viveu e existe. Um salve a este mestre da emoção.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Seu Nelson

A última vez que coloquei um texto de aniversário aqui no blog foi dia 21 de Setembro, aniversário de minha mãe (O texto "Um beijo, de sua Curuminha"). Hoje volto para fazer novamente umas linhas de aniversário, de lembrança, já que assim como estava longe de minha mãe no dia de suas primaveras, estou longe hoje deste que de algum modo é como se fosse parte da família, é um pouco um pai vagabundo e vadio, mas que ainda assim nunca me abandona. Aquele imenso coração, o tal do Nelson Cavaquinho.O mínimo que poderia ser dito sobre ele é que foi e será um de nossos maiores, sempre. Mas não tenho a intenção de discutir aqui sua obra, pelo contrário, eu só queria poder dar-lhe um grande abraço e dizer muito, muito obrigada seu Nelson...
Assim como quando do aniversário de minha mãe eu não podia, hoje também não posso concretizar este abraço. Mas apesar de seu corpo ter-se ido deste mundo (a casca completaria 100 anos hoje, se ainda encarnada), Nelson está perto, permanece bem aqui, cantando desde hoje cedo para mim. Tenho a sensação de que quem grava um disco não morre, porque morrer é parar a conversa, é se retirar da mesa. E ele não se retira, nem vai se retirar jamais de nossos ouvidos, lábios e palmas de mão... E além disso sempre, sempre e inevitavelmente será rememorado nas rodas boêmias e noitadas cariocas, especialmente se elas acontecerem perto do centro, da praça Tiradentes (mas também se elas tomarem forma pelas adjacências da Glória, Largo do Machado ou Copacabana, ou onde quer que seja).
Ainda que estando longe fisicamente deste meu pai adotivo ao contrário - adotado ele por mim, ao invés do inverso - ou como diria o meu querido amigo Flora, deste cara que é gente como a gente, da "sargeta e da lama" (na verdade Flora completaria com um " para caraaaalho, gente para caraaaalho"), eu quero poder lhe enviar onde estiver um brinde, Seu Nelson Cavaquinho.
Infelizmente só posso lhe mandar estas flores em palavra e o meu carinho postumamente. Mas pensando bem, como não te conheci enquanto passeavas encarnado por aqui, para mim você não se chama "saudade", se chama realidade. Eu já te conheci assim e este que eu conheci não morre. E não apenas não morre porque os mestres são eternos e seus ensinamentos perpetuam através das gerações, mas porque o som que é lançado ao vento, a música, ela nunca para de ressoar no mundo. E a cada vez que eu te ouvir a cantar aquele "laraiá" lindo de "Minha Festa", ou quando imaginar você no meio do picadeiro com a cara pintada todas as vezes em que ouvir "Palhaço", lá estará você. Vivo como sempre, em minha emoção e afeto.
Um grande beijo Seu Nelson. Minha admiração sincera e profundo repeito. Que toda esta energia que emana de tudo o que o senhor fez enquanto estava preso na casca, por aqui na Terra, possa continuar a nos ensinar como é que se faz para viver com mais liberdade e menos apego. Possa nos ensinar a ser bem mais gente.
Muito obrigada por tudo.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Dona Luzia

"Iara? Do teu nome não me esqueço, que bom. Nome de minha irmã, mas ela é doente, coitada, tem problema de cabeça."

Foi assim que conheci dona Luzia que, entre outras coisas, é a responsável pelas comidas mais saborosas, bem temperadas e calóricas do mundo, as quais temos o prazer de almoçar três vezes por semana aqui no escritório. Vem toda segunda, quarta e sexta lá da Rocinha até o que considera o fino bairro de Santa Teresa. Esta esbórnia de bairro onde quando não se morre a bonde, se é assaltado à pé, e onde morador é tratado como adereço exótico da miséria para turista ver. Mas falava de dona Luzia. Um metro e cinquenta de puro dendê, as argolas douradas que quando ela está namoradeira recebem uns penduricalhos de coraçõezinhos de camelô. O cabelo grosso e de um preto impecável com corte à moda antiga, curto e com uma densa franja lhe dá um ar coquete. É bonita que só ela. Aos sessenta e quatro anos, vai sempre que pode ao forró, ama dançar e fica cantarolando as músicas que eu estudo enquanto escrevo orçamentos em alto e bom som, sempre me pedindo com timidez pra botar Elis Regina. Gosta dos boleros todos que eu amo, mas discordamos às vezes quando ela acha que a voz da filha da Elis Regina é igualzinha à dela. Hoje a dobrei dizendo que não me transmitia nem um terço da emoção que a Elis conseguia transmitir.

" Ah, Iara. Isso é mesmo, é verdade."

Me perguntou umas coisas pela manhã às quais eu respondi desatenta, como de costume. Lembro de ter ouvido algo sobre carne moída. Quando saiu do forno aquela beleza de iguaria, me olhou com um sorrisão, embora sempre tente esconder os dentes:

" Iara, está pronto, vamos comer?"

Quando reparei, o prato nadava no molho de tomate.

"Sou alérgica, dona Luzia...não posso com tomate."

"Eu sou uma grossa estúpida em soltar estas palavras assim", pensei dois segundos depois, mas elas já haviam fugido da minha boca. Então em troca, para piorar minha estupidez, vem a dona Luzia com aquele afago:

" O que? Eu te faço esta comida com tanto carinho e você me diz que não vai comer, Iara? Eu te perguntei de manhã se você queria outra coisa e você nem aí, ficou só ouvindo a Elis Regina. Agora vai comer sim, ora se vai. E vai comer porque não vai fazer mal. Feito com amor não faz mal!"

Sábias palavras, minha cara dona Luzia. Muito obrigada. O prato estava - como sempre - delicioso, e eu - como sempre - antes mesmo do nosso cafézinho com cigarro já estava perdidamente apaixonada pela senhora, gente tão gente mesmo, a vera.
O tal do prato me fez foi um bem danado. Não há ressaca que sobreviva à um pouco de gordura, dois litros de àgua boa e uma bela dose de amor sincero.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Três Marias

Para Marina, Maria e Dindinha.

Três irmãs, três Marias
O laço de sangue, o fogo de chão
Barra mansa donde a curva escoa
Depois do rio d’água turva,
Se encaverna uma fonte boa!

Na sesmaria, todas as três
O passo manso, a reza firme
Fazem amor, farinha e doce
Entreolhando silêncios, beira-fogão

Três estrelas, penca de jóias
As mãozinhas dadas na constelação
Tempo fica e eis que anuncia a hora
De hora, em hora - um bravo galo capão

Três irmãs, quais as três Marias
Que a família é o presente dos céus
Olhem pelos teus, guardem que um dia
Também eles sumirão de vista sem acenar adeus

Como a quente labareda que sem toco esfria
E a tarde mergulha o dia para o escuro fundo das serras
Vivem brilhantes faíscas, estas três Marias
Três flores de amores, três frutos da terra.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Polução Noturna

Para Quintana


Em meus sonhos estás nua
Branca, alta, enluarada
Recém-chegada da rua
Entre os dentes, rosa alva

E esta rosa, cega a Lua
Com seu brilho de marfim
Só não cega a noite escura
E os olhos que tens para mim

Em meus sonhos, nuca exposta
Os teus lábios sangram fél
Tudo o que te faço gostas
Infernizas o teu réu

E em teu feitio esquálido
Eu padeço de loucura
Acordo sempre, membro inchado
Dilacerado nesta amargura!

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Chuva na estrada.

Sinais pela pele, temporárias constelações...
Gotas do outro lado da janela fazendo sombra.
Petit-pois, lantejoulas,
Irregulares padrões, respingos de tinta :

Lá fora chovia e a luz contrastava, salpicando todo o meu corpo.
Virei onça pintada, galinha d'angola, sombra de mola, bola de gude.
- Pedrinha redonda que atinge o açude e se envolve de auréolas -

Colar de contas,
Pérolas falsas,
Pela vidraça o choro da Lua
Água benta atirada,
Voz comovida que embola,

Sardas.

domingo, 9 de outubro de 2011

Uma canção para Luisa

Luisa, quem me autoriza
A te escrever uma canção?
Se já és tu conta precisa
A melodia da perfeição
Me diz como é que se harmoniza
Um poeminha para você...
Que foi educada sempre nos Tons
Do tanto amor e do sofrer
Eu queria sim, Luisa
Num belo dia quem sabe ser
Aquele que se exorcisa
À guisa de seu bem-querer
Mas diz quem é que me autoriza
A te escrever uma canção
Aqui calado, ouvindo a brisa
"Vem cá Luisa, me dá tua mão..."

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Tentativa frustrada.

Eu vim aqui só pra te negar
E te pedir pra me deixar
Não mais sucumbir ao teu amor
Tirar de teu beijo meu sabor.

Eu vim dizer: não quero mais!
Estes encontros viscerais
De nossos corpos, ardente chama
Tirar meu cheiro de tua cama.

Eu hoje vim de vez por toda
Te abandonar a bancarrota
Do bem-querer que em mim se fez
Tirar minha cor de sua tez.

E agora sim, de sí despida
Hei de ficar feliz da vida
Sem gosto, aroma ou colorido
Tirar meu corpo deste vestido.

Te fazendo vingança uma última vez
Mostrar todo o bem que a mim você fez
Mas que traiçoeiro o gozo do perdão!
Negou-me tirar você do coração.