Dormes teu sono atribulado, também pudera: herdaste de Adão toda a culpa do mundo.
Trazes nas mãos teus escritos sagrados, na boca a palavra bendita e maldita, a dura palavra de represália, de desgosto. Julga-os ignorantes. És certamente o mais religioso entre eles. O mais fiél. Enganas aos pobres, aos podres, aos bestas, aos desaventurados da alma. Até a mim por vezes enganas por alguns dias ou horas.
Mas eu sou uma mulher.
Tu não, tu és o rei e tudo podes. Só não convences o teu sono de se acalmar, sonhas quimeras noite afora. Nada apazigua a culpa de ser o vil carrasco, o único culpado e responsável pelas dores do mundo. Leva a vida pesada não porque é pesado o fardo, mas porque tem de ser. Deve ser. É assim que as coisas são para os escravos de Jó.
Acordas teu dia cheio, mais um dia de nosso Senhor, onde és mais uma vez de tudo senhor, menos de mim e de si. Em tempo, és ainda um pouco mais senhor de mim, porque me permito, antes de permitir a ti que me dirijas a palavra de desdém. Não há ferida nem afago como aqueles os que a palavra é capaz de fazer. Também disso tu sabes.
Corres tua vida apressada e não reparas as sarjetas, não reparas porque dói e um homem não chora. Imperas rijo do coração. Deixas para mim as mazelas do sofrer por amor ao próximo. Sou eu uma mulher e os meus anseios frívolos pouco importam ao mundo. Muito menos a monsenhor. Dos homens, o pouco que sei é de olhar debaixo. Falar baixo. Da cintura para baixo. E que não lhe atrapalhe a vida minha existência, não lhe envergonhe a costela roubada por outrem e a mim imposta.
Tu levas um brasão no mesmo lugar onde levo o amor.
Tu tens na ponta da língua o que entrou em mim sem que eu me desse conta.
Tu carregas nas costas as mazelas do mundo, enquanto eu, as carrego no ventre.
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