terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Outra vez, Ano-Novo.

Hoje é domingo. Há mais de dez dias um ano novo começou. Bela bosta, ano novo. Pros judeus não é ano novo, por exemplo. Nem para muitos índios.
Acordei cedo demais para o tamanho do meu sono, olhei pro alto da varanda e vi uma borboleta cruzar no espaço com um urubu. É claro que eles estavam a muitos metros de distância celeste um do outro, mas eu ainda estava grogue e meus olhos demoraram a ajustar o foco, naquele ardente exercício de controle imagético que nos obriga a apenas duas dimensões. A borboleta era linda, mas o urubu parecia mais feliz, voando longe, altivo. Pensei que é urgente alargar os horizontes (além de mandar fazer as benditas lentes novas para os meus óculos). 
Como ia dizendo, acordei há pouco de um porre fenomenal. Casamos e bebemos ontem à alegria de um rei e uma rainha Nagôs em grande batucada. A nossa turma quando ferra a beber num boca-livre não é de brincadeira. Como resultado, ainda não é nem meio-dia e já fumei dois cigarros para duas xícaras de café preto sem açúcar. No último gole entornei de vez minhas promessas e expectativas deste ano novo quando, se Deus permitir, farei trinta anos. Puxa vida, como eu imaginava tudo diferente... Mas até que ando muito bem para quem até hoje só fez o que lhe deu na telha e no coração. No mais são as marcas do sol e da estrada, que vão ficando cada vez mais fortes e menos pesadas. Sinto-me cada dia mais perto da natureza.
O mundo está em guerra como sempre, a economia vai mal como sempre, o calor está pior que nunca e continuamos trabalhando duro. “Sambando na lama e salvando o verniz”, como diria o Chico, mas sem toró. Não cai uma boa chuva há tempos. Dizem que agora acaba a água do planeta de vez. Tomara que não! Planetinha tão lindo, tão amado... Por via das dúvidas, tenho economizado o quanto posso, já que é difícil resistir ao chuveirão da varanda. O Rio parece que vai derreter e como diz a Gigi, daqui a pouco vão ter que baixar um decreto proibindo o povo de sair às ruas do meio-dia às duas. Quem dera alguém se preocupasse tanto assim conosco.  Continuamos trabalhando pesado, os artistas e humanistas carregando pedras de sol a sol.
Falando assim até pode parecer que eu tenha perdido totalmente as esperanças na vida e no amor. Não é isto, é só ressaca. Tem muita gente boa à solta por aí. Os meus poucos amigos verdadeiros, por exemplo, são pessoas de alta periculosidade em amor, arte, generosidade,companheirismo, entre outras coisas estranhas a este mundo de hoje.
Talvez 2015 seja um ano bom. Ouvi dizer que será regido por Xangô, o Rei justo. O Carnaval vem mais cedo e mais uma vez quero fugir para a roça. Talvez não consiga de novo, inebriada pelo brilho tolo das lantejoulas e pela ilusão de que dá tempo de deixar o ano começar daqui a mais um mês. Sou uma festeira irremediável, putzgrila. 
Ando perdidamente apaixonada pelo Ítalo Calvino e suas “Propostas para o novo milênio”, aonde já nos encontramos pelo décimo quinto ano, agora. Somente na literatura a vida se organiza como deve e as idéias caminham em tempo ideal, pairando eternamente fixadas no texto, fazendo ser sempre tempo de pensar e repensar. Calvino me dá tanto prazer na leitura que no fim do ano passado cheguei à um nível de antropofagia (e desespero com o fim do ano) que tentava ler três obras suas ao mesmo tempo. “Absurdo” - me disse outro bom amigo: “o fim do ano não é o fim dos tempos...”. Recomecei uma por uma de novo, ele estava certo. Penso que tampouco o começo do ano deve ter que ser o começo dos tempos, onde tudo se transforma, a vida ressurge das cinzas e num passe de mágica o mundo fica bom, as contas são zeradas, e tudo o mais.Quem dera. Mas se é uma desculpa a mais para sonharmos, qual o problema também?
Olhei pro céu e vi um lindo bando de urubus rondando e comendo a carniça do passado. Éramos nós. Bela bosta. Na natureza tudo se transforma.