segunda-feira, 28 de novembro de 2011
Delírio Gitano
Deixe-me assim, que eu me levo pra longe. Eu possuo o terrível e imutável hábito dos ciganos, de viver nas estradas, de paixões incendiárias e de, por amor, roubar criancinhas. De chafurdar como os porcos na lama, de engolir diamantes e vender falsas pedras preciosas. Possuo o hábito intenso e efêmero das fogueiras. Deixe-me assim para que eu esqueça, para que meus olhos não contenham mais os seus e seja em breve outro o cheiro que me habite. E ainda que retorne seu cheiro depois de tanto tempo, e re-grude em mim, seja apenas um cheiro passageiro de flor, ou de amor passado, ou de desejo inoculado. Seja um cheiro de lar, que mesmo os ciganos cultivam a cada acampamento. Sempre haverá este cheiro de casa, este cheiro de acalanto, do qual já fiz e farei a minha esteira e o meu lençol. E do qual para sempre precisarei sentir saudade, invenção gitana para milongar beira-fogo.
Desprendo-me assim porque se faz necessária a solidão encorajadora das estradas. Nesta noite eu tive um sonho, deslizava por pedras escorregadias, ardósias, me arrastava por elas de barrigada, de quatro, ralava os joelhos, mas não me feria. Divertia-me, ao contrário, dos arrepios do medo e da escuridão chuvosa que tanto temo.
Deixe-me assim, que eu me levo pra longe. Eu possuo o terrível e imutável hábito dos ciganos, de vestir-me de luxo e sujeira, de rodar a saia vermelha. De rosas, de medalhas. Eu leio nas mãos de outros o destino que me carregará para a próxima parada, menos importante onde e mais importante como. E quando, que é sempre o dia em que o solo se esgota, a colheita termina, ou que não restam mais ouvidos para a misteriosa música dos bandos de amantes da lua cheia. Eu vou junto do ritmo lunar transmutar-me em outra, mudar de nome e de cabelos, contar outra história sobre mim e sobre todos os mil homens que amei até agora.
Deixe-me assim, eternamente um vir a ser. Pois o que sou hoje é vento e fogo, semente e terra, que amanhã - disse-me o oráculo do tarôt: serão flores e violões. Os mais exóticos frutos tropicais.
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