sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Outra Oração à Madrugada

Ó minha amada dos olhos vermelhos
Da boca amarga, dos seios em flores
Fiel namorada dos pobres boêmios
Que vela em segredo as juras de amores

Ó minha santinha, de nada culpada
Que me põe em prece quando o dia estoura
Estende teu manto de turquesa e prata
E brinda comigo esta manhã vindoura

Que eu de amar-te me morra um dia
Mas seja suave a minha passagem
Como se o teu beijo de anestesia
Só me transportasse em doce miragem

Não deixe que seja de atropelamento
Nem de uma doença imbecil e mesquinha
Que me desguiasse de ter mais um tempo
De estar ao teu lado e de seres minha

E que muito tarde esta hora de pena
E que tu me cuides muito direitinho
Também meus irmãos, amigos e poemas
Sempre disponham deste teu carinho

E tuas lições possam ser ouvidas
Tal qual Nosso Pai a Jesus ensinou
Mas foi numa noite de muita bebida,
E toda a mensagem se desvirtuou

(Soube da boca de um garçom, que garante que presenciou. Não era amém!)


Amem.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Viação Cristália, 6h25.

O cheiro do ônibus que me leva a Itapira é sempre o mesmo. Mudam de tempos em tempos as frotas, modernizam-se ainda que lentamente os autos de passageiros da rica Viação Cristália - "a mais moderna da região, quiçá de todo o estado de São Paulo"  - mas nada explica este cheiro idêntico que possui o sempre pontual ônibus das 6h25, que nestes dez anos de exílio me carrega volta e meia da cidade grande à minha terra natal. O mofo das minhas memórias se mistura à umidade do ar-condicionado, aos ácaros do estofado, aos perfumes desta gente trabalhadora cedo-da-matina e ao amarelo claro do tímido sol que nasce entre os prédios, Jacarandás e Flamboyants da cidade de Campinas. Adentra meus pulmões asmáticos e percorre o sangue feito limo nos azulejos do passado. Estanco. Dez anos se passaram no breve tempo de uma inspiração.
A idade avança na quarta marcha, neste ir e vir que parece eterno. Só este cheiro me garante que ainda pertenço a algum lugar, ou melhor, que um lugar em mim ainda pertence a alguma parte do mundo. O resto pertence ao mar, para beira donde fui um dia para nunca mais voltar, citando Caymmi, ou o mar que não me pertencendo me fez Capitão-de-longo-curso,  para citar Amado.
Fosse eu marinheiro, seriam infindos os portos e as conquistas heroicas, mas sendo eu poeta, são infindas apenas as histórias, as paixões e a permanente vontade de partir. Pensando bem, isto também é só uma história de marinheiro, de viajante ou de poeta. São todos feitos igualmente do mesmo impulso e da mesma saudade. Feitos do arrepio que dá este mesmo cheiro.
Uma hora e meia de viagem depois, adentro a cidade por sua única avenida. É tanto silêncio que mais parece um interior de útero, ou um fundo de mar. Dentro de mim explodem canções. O violão de meu pai, a sanfona de minha avó, o pandeiro do avô morto e as tias em coro na Fazenda Carlotinha. É uma batucada que se faz, é meu coração. A avenida se transforma nos morros gramados e eu escorrego sentada num pedaço de papelão, com as bochechas pegando fogo de tão vermelhas.Depois vou até a porteira e volto correndo. A porteira fica longe. Depois da porteira a estrada, depois da estrada o mundo, aonde só os passarinhos conseguem ir e depois voltar contando as novidades. Boi fujão não volta. Nem cavalo xucro, nem criança. Criança o homem-do-saco leva, se não for roubada antes pelos ciganos. Isto sem falar nos casos muito misteriosos de aparição de Pirigüila.
A idade avança feito um rio que corre sem barragem e sem volta..Piso o chão da minha terra.Um dia hei de voltar à minha terra nas asas de um pardal, numa chuva chegada do litoral ou na poeira das rodas de um ônibus da Viação Cristália, às 6h25.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Bolero Azul

Teus olhos antigos,
Dois camafeus
De pedra turquesa
Baixela de prata,
Caminho de mesa
Retrato pintado
Tinteiro azul

De Oxalunfã
Amor de Iemanjá
Mar da Bahia
Céu no verão
Pena da Saíra
Portão de solar
Flor de jacarandá

Teus olhos azuis,
Duas piscinas
Sempre vazias
A nota mais blue,
Na melodia
O dia que vai
Querendo ficar. 

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Contenda do Desejo

Rebelar-se contra um desejo
É em vão brigar para perder a luta
Pois o desejo é como Besta-Fera
Nos come o talo, as folhas e a fruta

Aos poucos chupa a polpa e o caroço
Deixando um gosto de gozo e bagaço
Não teme ácido nem cicuta: 
Amarra a boca e aperta o laço

Mas se inocente se rebelar o pobre
A este fogo que arde quanto pulsa
Não se fará vencedor mais nobre
Nem ganhador da contenda injusta

Fará apenas amargar por dentro,
E apontar com ares de repulsa
Àqueles que ao Desejo-Rei –Supremo
Não negam peito nem travam disputa,

Pois se é a vida um sopro passageiro
Que murcha feito a flor sob o mormaço
É do desejo o breve meio-tempo
Entre nascer e morrer de cansaço. 

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Cantiga do Amor de Novo

Cantar, cantar para quê?
Para louvar os passarinhos
E exaltar toda a beleza
Que há em volta dos seus ninhos

Cantar pela grandeza
Das florestas brasileiras
Pelas águas, pelos ventos
E cheiro das Aroeiras

Cantar, pois é tão bonito
Quando canta a Curruíra
Avisando que já chega
O calor de um novo dia

E vale cantar gostoso,
Relembrar que é boa a vida
Porque pode haver de novo
Um clarão, uma saída

Mas se o canto não chegar
Ao coração de toda a gente
É tudo anda tão triste
Que o amor ficou doente

E cantar então será
Um instrumento de brinquedo
Que se brinque com o azar
Que se brinque até com o medo

E assim, feito criança
Uma voz de tão verdade
Vai pôr abaixo a ditadura
Da tristeza na cidade

E cantar, será para sempre
O valor mais precioso:
Uma chuva de estrelas
Dentro do peito deste povo.






sexta-feira, 6 de junho de 2014

Tico

( Para Rubem Braga, com amor)

A primeira vez que vi a morte de perto foi com o Tico.
Tico foi o nome que meu irmão e eu demos a um filhote de pardal que caiu do ninho no quintal, Tico de tão pequenino que era. Minha mãe o achou antes que o cachorro achasse e levou para dentro de casa para cuidarmos. “Não fiquem muito apegados, não sei se ele sobrevive” - avisou. Mas já era tarde demais. O Tico ainda não tinha penas e seus olhinhos pretos continuavam fechados, tão pouco tempo tinha fora da casca. Mas piava. Era pequeno e mole, certamente um milagre estar vivo, mas amoleceu meu coração de criança no exato momento em que o vi, tão absolutamente indefeso, tão mais indefeso que eu. Tornei-me logo responsável por sua alimentação e cuidado, como boa irmã mais velha que sempre fui.
Foram dias de muita torcida e dedicação. Mamãe fazia uma papa de fubá com água e eu alimentava periodicamente o Tico com a pontinha de um palito Gina, aos pequenos bocados, com amor e paciência. Ficava ansiosa até voltar da escola e olhar a caixinha onde ele estava, forrada com pano macio e ao abrigo do sol e chuva. Se ele estava quieto, dava um leve toque na beirada, torcendo para que estivesse só dormindo, ao que ele respondia com um fraco pio, que enchia meu coração de esperança novamente.
Eu amei o Tico. Nunca desejei tanto algo na minha curta vida até então, como desejei que seus olhinhos abrissem, que o pio ficasse forte, que as peninhas despontassem e que eu o visse, tempos depois, voar. Sonhava em vê-lo voar. Preocupava-me o fato de não saber exatamente como ensiná-lo, afinal geralmente isto é tarefa das mães-pardal, que instintiva e carinhosamente empurram os filhotes do ninho na hora certa do tempo da natureza, para a primeira decolagem atrapalhada, mas que sempre dá certo. Para mim não importava. Tivesse eu mesma que aprender a voar, ensinaria o Tico tão logo ele ficasse forte e o libertaria, mesmo sofrendo a sua já anunciada ausência.
Aconteceu dias depois, não lembro quantos. Cheguei em casa da escola e o Tico não estava dormindo. Toquei a caixinha com lágrimas nos olhos e murmurei: Acorda Tiquinho da mamãe, acorda! Mas ele não respondeu. Meu passarinho tinha morrido e com ele toda a esperança de uma menina sonhadora brincando pela primeira vez o jogo eterno e triste de despistar a morte. Não Tico, não! – gritei alto e caí num choro compulsivo, que neste exato momento, mais de vinte anos depois, ainda vaza de meus olhos ao lembrar da sensação do corpinho gelado e duro que retirei da caixinha forrada e coloquei numa caixa de fósforos para velar na mesa da sala, com flores e vela acesa por toda a tarde, sem conseguir parar de chorar. Eu nunca tinha ido a um enterro. Eu apenas fiz aquilo sem entender o que fazia, imbuída de uma descomunal coragem que me assolou naquele momento de perda e uma imensa vontade de ficar mais um pouco com ele, o filhotinho que uma péssima mãe deixara cair do ninho, mas que no fim tinha me dado dias de profundo amor e carinho, como antes não sabia poder sentir.
Quando a tarde terminou e minha mãe já estava brava com meu chororô, fiz a fúnebre caminhada até o quintal e enterrei o Tico debaixo do pé de limão galego, com uma cruzinha de madeira em cima. Na minha imaginação, ele ficaria ali por perto sempre depois que virasse espírito de passarinho, num galho daquela amada árvore, piando de vez em quando e talvez até se lembrando de mim, sua amiga mãezinha de oito anos de idade, mas a quem tanto ensinou. Acho que neste exato dia eu comecei a amadurecer e entender o que era a vida.
Hoje sentada na varanda, vi um Tuim entrar pelo vão da tela e se aproximar muito de mim, sem medo ou cerimônia... Na verdade verdadeira, o Tuim sorriu para mim e no coração daquela menina que mora no meu peito, achei que era o Tico vindo me dar bom dia e anunciando de algum modo que, embora a morte sempre vença a partida, não há porque não brincar e aproveitar esta linda aventura de viver e desviver. Esta grande aventura de aprender a amar.
Afinal, – sabe-se lá? – talvez morrer seja somente a chance de finalmente aprender a voar.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Uma Mulher

Sou uma mulher sem requintes
Branca, comum, sem graça
Sou a mulher que caminha na praça,
Sou a mulher que voa na Lua
Sou mulher de coração sensível
De pés sensíveis, que se fere e dança
Sou mulher desde criança,
Mas duramente aprendi com Simone
Que me tornei mulher.
Mesmo assim, uma mulher qualquer
A do espelho e a das fotos,
A dos dias nublados,
Sou a que tantas vezes faz votos
Para descumpri-los tão somente.
Sou uma louca demente
Que mensalmente, sangra e chora
Que diariamente duvida e implora
Por ser esquecida no vácuo do mundo
Inda assim, mulher de amor profundo
De paixão doente, de dor freqüente
Revolucionária, quando falsa e carente
Reacionária, libertina e valente
Sou uma mulher diferente?
Ou que resiste, nas horas duras
Que sonha só nas horas futuras
Que cala só nas horas presentes
Sou atéia, mundana e crente
Sou a outra, a mesma e por sorte
Sou a que veio num Ita do Norte
Sou a que ancora ao Sul a saudade
Aquela que luta, aquela que cansa
Aquela que vinga por todas as suas
Aquela que passa invisível na rua
Aquela que fala e provoca rumores
Eu sou o que resultei destes anos
Eu sou a mulher que escolheu seu caminho
A dama de noite, a cheia de espinhos
Eu sou poetisa - meu dom, meu calvário.
Sou uma mulher de impressões amenas
Adulta e pequena, perante esta tarde
Eu sou uma mulher que no fundo, no fundo

Vive de inventar que existe de verdade. 

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Mandamentos

Amarás em mim a força mais bruta,
As palavras mais duras,
E o desejo de partir.

E amarei em ti a aparente calma,
A beleza da alma,
E o porto aonde dormir.

Cultivaremos os dois a loucura da disputa,
O amor que há na luta
Entre o vento e a raiz.

Pois a flor mais delicada dança presa na estrada
É por tudo ameaçada,
Mas parece ser feliz.

(Amarás em mim teu sonho
Amarei em ti meu sonho)

Pois o que é terra quer ser vento,
O que é vento quer ser flor,
E assim mesmo é que arpejam
Os desatinos sem fim do amor!

Entre ter e querer sonhando
Em sentir e fingir não sendo,
Não amarás, não amaremos
Sem padecermos deste mesmo mal.