quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Poema do Sempre-Ir

Pé de Ipê amarelo-ouro,
Repousando sobre o campo verde
O amor que tenho é demais sincero,
Mas é muito grande a minha sede

Noite preta que escorre do alto,
Recobrindo o verde da montanha
O amor que tenho é muito farto,
Mas bem maior a minha sanha

Rio esmeralda que serpenteia,
Rolando as pedras duras do caminho
O amor que tenho vive em minha aldeia,
Mas é do mundo inteiro o meu destino


domingo, 8 de janeiro de 2017

Doce lucidez

O amor quando vem chegando
Parece um pássaro delicado
Vai aos poucos desenhando
O seu ninho enfeitado
Põe no bico a voz mais doce,
E nas asas só carinho
Pra que assim o amor comece,
Bem fundado e bem mansinho
Seca as folhas do passado,
Tira as pontas dos espinhos,
E no canto mais bonito
Guarda a flor pro seu benzinho

O amor quando se mostra,
Tem a clareza dos rios
Tem a força das quedas d’água,
E não teme os desafios.
Vai aos poucos convencendo
Toda a margem que o rodeia
De que o amor revolve a terra
Toda vez que a luz clareia
Não é nunca o mesmo amor,
Mas quem ama e tece a teia
Bem conhece a sua face
E por ela se norteia

O amor quando só cresce
É o respiro da mata verde
É o calor das rochas vivas,
E o sabor da maresia
Ponte presa a duas almas
Sem estacas nem correntes
Construída da linguagem
Que só os amantes compreendem
É uma doce lucidez
Que se afirma todo dia:  
O amor nunca caberá

 Por inteiro na poesia. 

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Quarto Delírio - Musgo e fluorita.

Estou de volta ao primeiro palco de minha vida, no porão da velha igreja onde a escola era sediada. Canto diversas canções de vestido branco sobre dois botões de seios, danço e canto sem parar, prenhe de uma liberdade e leveza que jamais possuí. Vejo do palco o pai na terceira fila, a mãe em pé ao seu lado e ao fundo, como quem apenas espreitasse, o avô que não convidei para a estréia. Jamais me perdoou. Em delírio, perdoava.
Corte: estou um pasto pedregoso e cheio de vacas leiteiras, dentro da caminhonete de um senhor desconhecido, mais velho que meu pai e mais novo que meu avô. Olho as vacas no pasto enquanto a voz estranha do homem, que não vinha de sua boca, mas sim de toda parte, me responde a pergunta não-feita: ele era da macumba, sempre foi da macumba. Se não acredita te levo a quem te conte. De repente estamos ombro a ombro naquele elevador minúsculo, claustrofóbico como a sala de carpetes da casa da Avenida Pauleti. Descemos, descemos, descemos, quase sem ar. No fundo do mais profundo, está a criada cor de café com leite sentada na mesa redonda enquanto come bolacha maizena. É verdade, minha filha, ele era da macumba, sempre foi. E você não escapa viva. Peço para ir ao banheiro antes que mije as calças. Vou, ela fuma. Volto, quero partir, o elevador está enguiçado. Quando para assim custa a voltar a funcionar. Preciso partir. Sem dúvida nem desamparo empurro com meus braços o teto com uma força imensa, uma força que jamais possui.  A máquina anda, lá em cima me espera o senhor de meia idade.

- Me dá uma carona?

Ele me leva até a porta da mata fechada, para onde caminho sem olhar para trás. Encontro a trilha,subo dois degraus de pedra, à minha esquerda estão duas meninas muito pequenas e sorridentes. Curiosas, brincam comigo e eu com elas. Chegamos juntas à uma imensa porta feita de musgo e fluorita. Em frente à porta, pego um punhado de pétalas nas mãos e sopro no rosto das meninas. Elas desaparecem. Viro o trinco da porta, avisto o abismo, um passo à frente e aquele clarão.

terça-feira, 31 de maio de 2016

Canto escondido

Esse é o canto mais escondido da casa
O canto dos fundos, aonde ninguém vai
O canto das culpas, o canto secreto
O canto da falta sentida do pai

É este o das sombras, o mesmo dos ventos
O canto do tempo e dos temporais
O canto mofado, doente e sem sol
O quarto do engano, das horas sem paz

Este é o canto mais escondido da casa
O canto sombrio, o das sete chaves
Ao qual não se deve jamais retornar

Aonde se vai parar  por descuido,
O canto onde o uivo da fera é mais forte
O canto onde os vivos

 - e os vivos somente -


Têm medo da morte. 

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Uma lição dos passarinhos

Para Luíza Miller, em seu aniversário. 


Muitas vezes me ocorre o desejo, olhando de minha janela, de pegar um pássaro com as mãos.
Outro dia entrou atropelada uma imensa borboleta e pousou num canto do quarto. Vi que tinha uma pata quebrada e imaginei que por isso estivesse desorientada. Tentei com muito cuidado pegá-la com um lápis, onde talvez pudesse se apoiar, fazendo uma espécie de bengala para aquela pata que – em minha cabeça – lhe fazia falta. Porém o instinto da alada era mais forte e quando a toquei ela esboçou um vôo, um vôo encantado onde me mostrou todo o seu branco e turquesa que estava oculto pelo lado de fora das asas marrons e pretas recolhidas. Tomei um susto tão grande com sua beleza que comecei a tentar acalmá-la, que bobagem, cantando baixinho e conversando com ela. Mas a pobrezinha se debatia desesperada e tentava em vão fugir do quarto e suas imensas paredes. Aquela borboleta era eu mesma tentando sair do quarto, de minha cabeça pequena para as asas do pensamento, presas ao concreto, à luz branca do computador, às garras imundas do capital.  
Assim como a imaginação, quanto mais eu tentava cercá-la, mais crescia o medo de pegá-la com a mão e quebrar suas tão lindas e frágeis asas. Sabendo que não haveria outro jeito, tomei coragem e de uma vez só a peguei bem perto do corpinho duro e corri para a janela, onde a senti desgrudar de meus dedos. Ela se debateu mais um pouco, como que atordoada ainda pelo susto e enfim levantou vôo, aquele vôo lindo e inesquecível para mim, deixando o pó de sua cor em meus dedos, em formato de coração. Quem precisa de quatro patas em perfeito estado quando se tem um par de asas?
Mas os pássaros são diferentes dos insetos. São quentes, carnudos e muito sentimentais. Esses bem-te-vis que vivem na minha janela, por exemplo. Fico os observando e me comunico com eles mentalmente quase todos os dias. Sempre pergunto frivolidades: Como estão os céus por aí? Onde vocês se esconderam do temporal de ontem? Bebe um pouco daquele fio de água fresca que desce a pedra por mim? Parece tão saborosa... E eles sempre me respondem saltitantes, ariscos e charmosos, meio me dando bola, meio não. Meio fazendo-me invejar a sua liberdade de pássaro, a sua beleza sem fim, a sua ética. Sinto por eles tanta ternura que essa vontade de abraçá-los me invade como aquela vontade irresistível que os namorados têm de dizer “eu te amo” pela primeira vez.  Mas como eu já disse, eles são criaturas muito sentimentais. Agora mesmo apareceu uma curruíra e se dependurou na árvore em que um bem-te-vi adolescente estava. Ela parecia perdida na área e logo as rãs que habitam o côncavo da pedra começaram a avisar: Xô...xô...xô... Mas ela ignorava e não arredava pata. Então o bem-te-vi arredio como toda criatura de sua idade deu-lhe uma rasante e ela saiu simplesmente desconcertada em seu pio metálico de reclamona. Tudo isso para que  bem-te-vi alçasse outro vôo logo em seguida, nos deixando - a árvore e eu - em pleno abandono. Decerto foi se juntar aos parentes no alto azul do céu, de onde podem ver todas as bobagens que os humanos fazem de seus dias, com semanas e fins-de-semana, enquanto eles vivem para voar, cantar e desfrutar da criação.“Isso mesmo! Vocês é que estão certos. Aproveitem por mim!”, penso nesta hora, e é sempre este pensamento que me demove da idéia mesquinha (que as paixões sempre suscitam) de tê-los em minhas mãos, calmos e passivos, para acariciar seus corpinhos e penas. Um pássaro só ficaria assim por doença ou imposição. E isso não é amar, dizem os sábios.
Amor é quando simplesmente saber daquela felicidade nos basta. 
Quem precisa tocar com as mãos, afinal, quando se pode tocar com o coração? 

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Menino na Madrugada

O menino na madrugada,
Olhos de estrela recém-caída
Tinha a frase decorada
Sobre as moedas que pedia

“Pro café”- só repetia
De rostinho contraído
De rostinho contorcido
De filhote desesperado

Entreguei o tal trocado
Então perguntei por fim,
Do que mais que carecia:
- Pode pedir para mim!

Ele estático me olhava
Qual olhasse um abismo do topo

- não que nada precisasse -

Mas de tanto que carecia,
Já não tinha sequer palavra
A miséria havia lhe comido até as idéias.

sábado, 31 de outubro de 2015

Cantiga do Amor Enfim

Para Glauber Seixas


O primeiro sol da manhã
Mar sereno sob o luar
Uma chuva boa que chega pra semente desabrochar

O suspiro manso do rio
No instante de desaguar
O orvalho descendo à terra pelas mãos da brisa no ar

Todos versos que jamais fiz
Pois não saberia rimar
Uma imensidão estrelas na centelha de um só olhar

O amor que nunca se viu
Mas que muito se ouviu cantar
Ilumina a minha vida desde que enfim chegou para ficar.