domingo, 21 de fevereiro de 2016

Uma lição dos passarinhos

Para Luíza Miller, em seu aniversário. 


Muitas vezes me ocorre o desejo, olhando de minha janela, de pegar um pássaro com as mãos.
Outro dia entrou atropelada uma imensa borboleta e pousou num canto do quarto. Vi que tinha uma pata quebrada e imaginei que por isso estivesse desorientada. Tentei com muito cuidado pegá-la com um lápis, onde talvez pudesse se apoiar, fazendo uma espécie de bengala para aquela pata que – em minha cabeça – lhe fazia falta. Porém o instinto da alada era mais forte e quando a toquei ela esboçou um vôo, um vôo encantado onde me mostrou todo o seu branco e turquesa que estava oculto pelo lado de fora das asas marrons e pretas recolhidas. Tomei um susto tão grande com sua beleza que comecei a tentar acalmá-la, que bobagem, cantando baixinho e conversando com ela. Mas a pobrezinha se debatia desesperada e tentava em vão fugir do quarto e suas imensas paredes. Aquela borboleta era eu mesma tentando sair do quarto, de minha cabeça pequena para as asas do pensamento, presas ao concreto, à luz branca do computador, às garras imundas do capital.  
Assim como a imaginação, quanto mais eu tentava cercá-la, mais crescia o medo de pegá-la com a mão e quebrar suas tão lindas e frágeis asas. Sabendo que não haveria outro jeito, tomei coragem e de uma vez só a peguei bem perto do corpinho duro e corri para a janela, onde a senti desgrudar de meus dedos. Ela se debateu mais um pouco, como que atordoada ainda pelo susto e enfim levantou vôo, aquele vôo lindo e inesquecível para mim, deixando o pó de sua cor em meus dedos, em formato de coração. Quem precisa de quatro patas em perfeito estado quando se tem um par de asas?
Mas os pássaros são diferentes dos insetos. São quentes, carnudos e muito sentimentais. Esses bem-te-vis que vivem na minha janela, por exemplo. Fico os observando e me comunico com eles mentalmente quase todos os dias. Sempre pergunto frivolidades: Como estão os céus por aí? Onde vocês se esconderam do temporal de ontem? Bebe um pouco daquele fio de água fresca que desce a pedra por mim? Parece tão saborosa... E eles sempre me respondem saltitantes, ariscos e charmosos, meio me dando bola, meio não. Meio fazendo-me invejar a sua liberdade de pássaro, a sua beleza sem fim, a sua ética. Sinto por eles tanta ternura que essa vontade de abraçá-los me invade como aquela vontade irresistível que os namorados têm de dizer “eu te amo” pela primeira vez.  Mas como eu já disse, eles são criaturas muito sentimentais. Agora mesmo apareceu uma curruíra e se dependurou na árvore em que um bem-te-vi adolescente estava. Ela parecia perdida na área e logo as rãs que habitam o côncavo da pedra começaram a avisar: Xô...xô...xô... Mas ela ignorava e não arredava pata. Então o bem-te-vi arredio como toda criatura de sua idade deu-lhe uma rasante e ela saiu simplesmente desconcertada em seu pio metálico de reclamona. Tudo isso para que  bem-te-vi alçasse outro vôo logo em seguida, nos deixando - a árvore e eu - em pleno abandono. Decerto foi se juntar aos parentes no alto azul do céu, de onde podem ver todas as bobagens que os humanos fazem de seus dias, com semanas e fins-de-semana, enquanto eles vivem para voar, cantar e desfrutar da criação.“Isso mesmo! Vocês é que estão certos. Aproveitem por mim!”, penso nesta hora, e é sempre este pensamento que me demove da idéia mesquinha (que as paixões sempre suscitam) de tê-los em minhas mãos, calmos e passivos, para acariciar seus corpinhos e penas. Um pássaro só ficaria assim por doença ou imposição. E isso não é amar, dizem os sábios.
Amor é quando simplesmente saber daquela felicidade nos basta. 
Quem precisa tocar com as mãos, afinal, quando se pode tocar com o coração?