domingo, 28 de agosto de 2011

Poema para um jornal do século passado.

Já era sabida a tragédia,
Porém ninguém se antecipou
Bateu firme num poste de luz
O Bonde que outrora ao Rio alegrou.

Desde a época de Oswaldo Cruz
Já era grande a transformação
Que fazia, pela ferrovia
O bonde com seu apito mandão!

Foi-se morto o motorneiro
Um casal de estrangeiros
E uma alentejana fadista

E do bairro de turistas
(A linda e bela Santa Teresa)
Foi-se embora toda a gente da vista.

O triste ocorrido de ontem
Fez alardear os jornais
Vieram fotógrafos aos montes
Abarrotou os hospitais

O prefeito a se pronunciar
Como sempre o mais ligeiro
Agora só falta botar
A culpa de tudo no morto motorneiro!

Hoje apito do bonde não se escuta
Nas abandonadas ladeiras do bairro
Também, depois do que houve!

E o triste povo vestido de preto
A demonstrar o seu luto pergunta
O que se vai fazer a respeito?


sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Aos filhos de Adão.

Dormes teu sono atribulado, também pudera: herdaste de Adão toda a culpa do mundo.
Trazes nas mãos teus escritos sagrados, na boca a palavra bendita e maldita, a dura palavra de represália, de desgosto. Julga-os ignorantes. És certamente o mais religioso entre eles. O mais fiél. Enganas aos pobres, aos podres, aos bestas, aos desaventurados da alma. Até a mim por vezes enganas por alguns dias ou horas.
Mas eu sou uma mulher.
Tu não, tu és o rei e tudo podes. Só não convences o teu sono de se acalmar, sonhas quimeras noite afora. Nada apazigua a culpa de ser o vil carrasco, o único culpado e responsável pelas dores do mundo. Leva a vida pesada não porque é pesado o fardo, mas porque tem de ser. Deve ser. É assim que as coisas são para os escravos de Jó.
Acordas teu dia cheio, mais um dia de nosso Senhor, onde és mais uma vez de tudo senhor, menos de mim e de si. Em tempo, és ainda um pouco mais senhor de mim, porque me permito, antes de permitir a ti que me dirijas a palavra de desdém. Não há ferida nem afago como aqueles os que a palavra é capaz de fazer. Também disso tu sabes.
Corres tua vida apressada e não reparas as sarjetas, não reparas porque dói e um homem não chora. Imperas rijo do coração. Deixas para mim as mazelas do sofrer por amor ao próximo. Sou eu uma mulher e os meus anseios frívolos pouco importam ao mundo. Muito menos a monsenhor. Dos homens, o pouco que sei é de olhar debaixo. Falar baixo. Da cintura para baixo. E que não lhe atrapalhe a vida minha existência, não lhe envergonhe a costela roubada por outrem e a mim imposta.
Tu levas um brasão no mesmo lugar onde levo o amor.
Tu tens na ponta da língua o que entrou em mim sem que eu me desse conta.
Tu carregas nas costas as mazelas do mundo, enquanto eu, as carrego no ventre.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Velho Lobo do Mar

Atracou o barco, optou consciente por laçar um nó final de pescador (tornara-se exímio na arte de dar nós), mas escolheu um tipo bem simples e eficiente, que quanto mais se puxa, mais aperta. Fim de expedição, adeus oceano imenso.
No cais do porto um cego rabequeiro tocava o Assum Preto, tão triste, tão bonito. Tentou se lembrar de quando tinha sido a última vez em que ouvira aquela música, mas não conseguiu. Não conseguiu se lembrar nem de quando havia sido a última vez que tinha ouvido música de instrumento e não de passarinho. Surpreso, se lembrou que passarinho fazia piado, gente é que fazia música. Tinha muita coisa por reaprender, ou ao menos relembrar.
Agora era retomar a vida em terra firme.
Recolheu uns pertences e uma imagem de Iemanjá. Assim que chegasse em casa e ajeitasse melhor as coisas, viria buscar o restante. Adeus meu barco, minha casa, meu amigo. Adeus solidão das marés. Primeiro degrau e uma pausa antes de descer. Era como se todo o seu corpo continuasse se movendo involuntariamente junto das ondas do mar. O vaivém de tantos anos devia ter adentrado em seus músculos, teve que se segurar ao corrimão, como um velho. Um velho lobo do mar. Muito tempo se passara de fato.
As filhas, como estariam? Sabia que tinha ganhado também uma neta, ficou tão feliz e ansioso por conhecê-la. A chegada da netinha era na verdade o maior motivo do retorno... De suas meninas tinha saudade, claro que sim, mas era uma saudade remota de nostalgia, saudade de quando eram pequenas, indefesas e tinham somente em si o porto-seguro. Eram lindas, duas princesas. A mais velha morena, com o nariz adunco como o seu e a mais nova delicada e bondosa como a mãe. Igualzinha à mãe. A saudade o remetia a um tempo que já tinha ficado pra trás. Quanta água já rolara desde então.
Quando de sua partida, numa tentativa de se manter presente, instalou modernos aparelhos que lhe haviam custado uma fortuna implantar na embarcação. Hoje já estavam obsoletos, mas ainda funcionavam com perfeição apesar da maresia prolongada, eram prova as mensagens que recebia das mulheres que deitava em cada porto, umas preocupadas, outras sonhadoras. Mas de suas meninas, jamais tornou a receber as mensagens de carinho. Quando partiu planejava apenas um passeio pela Costa Verde, onde encontraria com uma amante menina, uma bonequinha de origem oriental. Já não ia bem das pernas o casamento, mas ainda assim, sendo homem de muitas posses, mantinha a casa e as aparências impecáveis. Jamais deixou vazar notícia sobre seus casos.
Era dia de revolta no mar, aquele dia em que soube que sua esposa havia falecido. Iemanjá havia mandado ondas gigantes e não conseguira atracar na costa. Estava sozinho e apavorado, porque não trouxera consigo marujo ou qualquer outra pessoa, para manter as tais aparências. E agora revolta em alto mar. O moderno aparelho de mensagens apitava sem parar, mas não conseguira fazer contato, estava sozinho com aquele mar imenso, com aquele castanho claro de água fria em revolta. Oito horas se passaram, perdeu o prumo, o barco ficou à deriva. Quando conseguiu tomar novamente ciência das coisas, o recado que dizia: “Sua esposa acaba de falecer. É urgente retornar.”.
Leu a mensagem umas trinta ou quarenta, ou duas vezes. Não podia se lembrar ao certo. Mas lançou-se ao mar e boiou por longo tempo, na calmaria de depois de rebuliço. Pensava em suas meninas, o que seria delas agora? Pensava em voltar e se deparar com a tristeza em seus olhinhos, insuportável. Não, ele não ia conseguir. Era forte de corpo ainda então, mas tinha um espírito muito mole, um coração fraco. Morreria ao vê-las tão tristes, e num ato de egoísmo, resolveu não mais voltar. Em seus pensamentos, após tantos anos (quantos seriam?) muitas vezes havia brigado, feito as pazes, discutido com aquelas memórias. Estava certo de que as filhas já haviam o perdoado, o tempo e as memórias tinham sido complacentes consigo, tinham amenizado as dores, tinham estreitado os laços, desfeito os nós.
Já era hora de voltar.
Se bem se lembrava do caminho, ainda com certa dificuldade de caminhar em terra, iria a pé. Não era muito longe dali da marina. Um velho marujo o reconheceu, com uns olhos de quem vê assombração. Sorriu pra ele: “Bem vindo de volta, velho Lobo do Mar”.
É verdade, estava velho. Penou muito mais do que outrora a caminhada até o portão de casa, a mesma cerca já puída, ia dar um jeito naquilo. Caminhou pelo extenso jardim devagar como quem degusta a iguaria de um bom vinho, as memórias como flechas lançadas pelo tempo, surgindo na mente e esvaindo-se com a mesma rapidez, as memórias se fazendo presentes. Viu a Mangueira, o Jasmim-Manga, o Jasmim-Trepadeira, o Manacá-da-Serra, todas aquelas coisas da terra, da raiz do chão. Parou perto do lago artificial, olhou para dentro de casa e viu uma menina linda, cheia de cachos, e imaginou ser a sua caçulinha, seu neném. Mas a mulher que chegou e pegou aquela criança no colo, quem seria? Pelas barbas do Profeta, era ela sua caçula. E a menina dos cachos, era então sua netinha. O tempo e as imagens brincavam de ir e vir, como flashes de vagalume na noite escura, brincando de pisca-esconde. Não concordavam. Bambeou. Voltara para o mar ou ainda se mantinha ali em pé? Estava chegando ou saindo para viajar? Muito tempo se passou, estava velho. Falência múltipla dos órgãos, diriam os médicos depois. Falência múltipla das histórias, dos conceitos, do tempo. O tempo, o tempo.
Com os olhos mareados, voltou caminhando devagar ao portão. Era mesmo na solidão que deveria se manter, já não pertencia ao mundo dos iguais. Suas meninas eram melhor sem sua presença. Jamais deixaria que nada faltasse, nunca. Dinheiro nunca lhe fora problema, tinha muitas posses. Demandaria de alto-mar que alguém viesse e consertasse a cerca.
Voltou ao cais do porto, fez reverência ao marujo, seu velho amigo. O rabequeiro agora tocava Maracangalha: “Eu vou só, eu vou só...”. Apertou os ouvidos para guardar em si aquela imitação de passarinho que os homens fazem com instrumentos.
Voltou ao mar para nunca mais, deixando em terra seu tesouro.


segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A morte de Inocêncio.

Foi claro o instante em que ele se perdeu. Eu sei, pois estava lá.
Eram quase seis da tarde, dia caindo num sábado de sol. A patota toda no Bar do Gomes. Chegou cambaleando pelos trilhos, mas ainda não bebera. Estava trôpego mesmo assim, carregava uma mochila pequena como quem carrega uma cruz pesada. Vestia um short meio velho, uma camisa desbotada e tinha uns olhos verdes de fazer inveja à Natureza. Mas os olhos estavam encharcados.
Eu o reparei, pois era bonito de dar gosto. Magro, cheio de dentes brancos, uma cabeleira castanha. Mas hoje penso se não poderia eu tê-lo salvado naquele momento se não fosse este mundo tão besta, as pessoas tão despreocupadas das outras, que injustiça. Tivesse eu chegado perto dele e dito: “Olá meu irmão, meu parceiro de jornada. Vejo teus olhos tão tristes, quase posso sentir tua dor. Vem cá que lhe ofereço meu afeto de graça, vem cá que minha mãe Osùn me ensinou a ser carinhosa, pode chorar em meu ombro, pode confessar tua mágoa que eu lhe dou em troca minha amizade. Somos irmãos de jornada, afinal.”
Mas não. Eu apenas o observei, uns quatro meses atrás.
Entrou no bar, comprou uma garrafa de cachaça. Saiu sem olhar ninguém, sentou-se na sarjeta afastado da multidão e bebeu a garrafa toda de uma vez, os olhos verdes estáticos, quase extáticos. Ali permaneceu por dois dias e duas noites, em silêncio. Tornei a vê-lo algumas semanas depois. Reparei no quanto vinha sujo e que certamente tinha levado uma surra. Mas já estava falante, falava até demais, incomodava, pedia cigarros aos passantes que um pouco amedrontados o mandavam embora. Profanava à Deus e o mundo. Começou a ter alucinações militares, a chutar cachorros, enlouqueceu.
Sem entender eu perguntava às pessoas o que havia se passado com o rapaz. Eu não conseguia acreditar no que estava vendo acontecer e uns diziam que era porque devia usar muita droga, outros que ele sempre fora assim, maluco. Mas um ex- vizinho dele me disse que foi amor.
No dia em que ele se perdeu, havia sido expulso de casa pela mulher. Se batia nela, ou a havia traído eu não sei. Se era um amor bonito ou bandido, com história de horror ou romance, ninguém soube informar. O que há entre os casais, fica sempre apenas entre os casais e só eles sabem do que é ou não verdade. Aliás, muitas vezes nem mesmo eles sabem do porque do fim. Às vezes mesmo havendo amor não é possível ficar junto e em outras, mesmo havendo um grande amor, outro amor está escondido numa trincheira do caminho.
Como me dói a imagem deste rapaz, que apelidei em meus pensamentos de Inocêncio. Como me dói não ter feito nada por um semelhante, que padecia da dor mais banal e pior do mundo. Como me doeu na semana passada, quando ele me pediu um cigarro e eu dei, recebendo como resposta uma apunhalada: “Se a moça precisar de qualquer coisa pode contar comigo, viu?” E saiu correndo entre os carros.
Todos no bairro já aprenderam a conviver com ele. Estamos todos assistindo à sua morte, é fato. Outro dia se jogou na linha do bonde e não havia quem conseguisse o tirar. Deu agora para ser violento. Até o Pinel já chamaram, mas não há quem dê jeito de convencê-lo a sair da rua. De tantas surras já perdeu os lindos dentes, anda ranhento, fede, não tem mais nada de seu.
Hoje pela manhã, quando o encontrei de novo e foi insuportável a cena de desolação, cheguei mais perto para ouvir o que ele rezava em voz sussurrada, na esperança de oferecer-lhe um abraço. Meu Deus, como pode? Baixinho ele dizia, embalando seu próprio corpo largado ao chão como quem embala a toda a divina criação: "Pára, por favor. Pára, coração...".
Eu sei porque estava lá, eu vi o dia em que Inocêncio, ainda vivo, morreu de amor.

domingo, 14 de agosto de 2011

Pra Inglês Ver.

I miss you so much, dear
And still you haven`t called
For since eleven a.m.
I haven`t heard your voice
Come fix this burning pain
Come tell me it`s your choice
And that you feel the same
Caress of mine, that`s yours

I`ve also been today
To that place we first met
Hopping to hear from you
I left deep in regret
There I could get no sign,
No shadow, someone bet
Tonight he won`t show up
And you`d better forget

So I just came away
And found my empty home
You left me here to stay
Someday again you`ll come
And when that day arrives
I`ll say : as you no one
But have a pretty day
`Cause I do best alone.








terça-feira, 9 de agosto de 2011

Se eu soubesse

Se eu soubesse do que como, não negaria um pedaço
Se eu soubesse por onde ando, daria as diretrizes
Se eu soubesse do que quero, eu pegaria no laço
Se eu soubesse do que bebo, não mais diria tolices
Se eu soubesse dos perigos, não me lançava ao mar
Se eu soubesse o que há na noite, só viveria de dia
Se eu soubesse da vida, ai, se eu soubesse!
Seria difícil fazer poesia...

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Na presença do mestre.

Há quanto tempo, ainda que ausente em corpo, acompanhas cada um de meus passos.
Sabes tudo de mim e por inúmeras vezes já narrastes minha vida, dìtastes o andamento de minhas paixões e das piores perdas, as mais tristes e foi sempre em tuas palavras de amor ou de adeus que eu encontrei alento. Até mesmo da morte já me salvastes em vida. Há quanto tempo, desde que para mim o mundo é mundo, eu penso em ti diariamente querendo ou sem querer. Pois era sua a canção que minha mãe cantava para embalar-me ao berço, e do mesmo modo eu embalei minha irmã mais nova e meus doze primos e um dia eu hei de embalar um filho meu. Eu te digo sim e te escolho, eu busco seu nome dentre tantos para alegrar meu dia, eu solto ao ar suas palavras, eu te roubo, eu te gasto, eu te escravizo quando me tocas profundamente e ali você permanece cantando ou contando causos, incessantemente, até que tuas palavras entrem em meu peito de forma que seja impossível tirá-las. Eu te apreendo... E deste modo já me causastes as emoções mais lindas e as mais feias e continuas.
Agradeço a Deus pela sua saúde e por sua inspiração infinita (este milagre que ocorreu num Rio de Janeiro de tantos mistérios). Agradeço diante da imensidão do tempo, das eras, dos séculos, por compartilhar uma época contigo, um país, uma cidade. Isso tudo já me bastaria, eu já viveria a te cantar por aí a plenos pulmões na certeza de que professava as palavras de um sabedor das coisas.
Mas ontem, meu mestre, você foi me aparecer. E virou gente, teve carne, osso e olhos para mim. Disse meu nome, me apontou, me tocou no ombro antes de ir embora com um gesto de carinho. E diante de ti, silêncio. Diante de ti, nenhuma palavra. As palavras são suas e meus os ouvidos, diante de ti alegria de aprendiz, porque falas apenas a língua sagrada dos poetas e dos passarinhos, és um bruxo, um monstro, mas acima disso és um homem simples e do bem.
Diante de ti meu mestre, boca para sorrir e mãos para aplaudir. Nem nos meus sonhos mais absurdos eu poderia imaginar um privilégio tão grande. Se minha jornada terminasse de repente e hoje eu partisse deste mundo, eu iria feliz, eu juro. Subiria aos céus dançando, embalada por um canto seu.
Na sua presença meu mestre, quanta gratidão!

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Venha, meu samba.

Venha, me socorra
Hoje eu preciso aprender a viver.
Venha meu samba adorado
Traga seus poetas,
Salve mais um afogado
Como Drummond ensina a fazer

- Engrosse este ar que me envolve rarefeito teimando em não preencher os pulmões e por isso são só suspiros fundos e expiros em melodias: valsas, modas, lamentos. Já são boleros demais para este pobre coração, venha meu samba e traga seus versos e batucadas! -


Conforme esta veia de escárnio,
Tire o mundo de meu umbigo
Diga que isso já se passou contigo e com tantos outros mais.
Venha meu samba, me ensine a viver de si e por si só
Reze que são tantos e imensos os seus amores
Que te não surpreenderia ademais
Serem tão miseráveis os poetas,
Quando tão errados os casais.