Hoje é domingo. Há mais de dez dias
um ano novo começou. Bela bosta, ano novo. Pros judeus não é ano novo, por exemplo.
Nem para muitos índios.
Acordei cedo demais para o tamanho
do meu sono, olhei pro alto da varanda e vi uma borboleta cruzar no espaço com
um urubu. É claro que eles estavam a muitos metros de distância celeste um do
outro, mas eu ainda estava grogue e meus olhos demoraram a ajustar o foco,
naquele ardente exercício de controle imagético que nos obriga a apenas duas dimensões. A borboleta era linda, mas o urubu parecia mais feliz, voando longe,
altivo. Pensei que é urgente alargar os horizontes (além de mandar fazer as benditas lentes novas para os meus óculos).
Como ia dizendo, acordei há pouco
de um porre fenomenal. Casamos e bebemos ontem à alegria de um rei e uma rainha
Nagôs em grande batucada. A nossa turma quando ferra a beber num boca-livre não
é de brincadeira. Como resultado, ainda não é nem meio-dia e já fumei dois
cigarros para duas xícaras de café preto sem açúcar. No último gole entornei de
vez minhas promessas e expectativas deste ano novo quando, se Deus permitir, farei
trinta anos. Puxa vida, como eu imaginava tudo diferente... Mas até que ando
muito bem para quem até hoje só fez o que lhe deu na telha e no coração. No mais
são as marcas do sol e da estrada, que vão ficando cada vez mais fortes e menos
pesadas. Sinto-me cada dia mais perto da natureza.
O mundo está em guerra como sempre,
a economia vai mal como sempre, o calor está pior que nunca e continuamos
trabalhando duro. “Sambando na lama e salvando o verniz”, como diria o Chico,
mas sem toró. Não cai uma boa chuva há tempos. Dizem que agora acaba a água do
planeta de vez. Tomara que não! Planetinha tão lindo, tão amado... Por via das dúvidas, tenho economizado o quanto posso, já que é
difícil resistir ao chuveirão da varanda. O Rio parece que vai derreter e como
diz a Gigi, daqui a pouco vão ter que baixar um decreto proibindo o povo de sair
às ruas do meio-dia às duas. Quem dera alguém se preocupasse tanto assim
conosco. Continuamos trabalhando pesado,
os artistas e humanistas carregando pedras de sol a sol.
Falando assim até pode parecer que eu tenha perdido
totalmente as esperanças na vida e no amor. Não é isto, é só ressaca. Tem muita gente boa à solta por aí.
Os meus poucos amigos verdadeiros, por exemplo, são pessoas de alta
periculosidade em amor, arte, generosidade,companheirismo, entre outras coisas
estranhas a este mundo de hoje.
Talvez 2015 seja um ano bom. Ouvi dizer
que será regido por Xangô, o Rei justo. O Carnaval vem mais cedo
e mais uma vez quero fugir para a roça. Talvez não consiga de novo, inebriada pelo
brilho tolo das lantejoulas e pela ilusão de que dá tempo de deixar o ano
começar daqui a mais um mês. Sou uma festeira irremediável, putzgrila.
Ando perdidamente apaixonada pelo
Ítalo Calvino e suas “Propostas para o novo milênio”, aonde já nos encontramos pelo décimo quinto ano, agora. Somente na literatura a
vida se organiza como deve e as idéias caminham em tempo ideal, pairando eternamente fixadas no texto, fazendo ser sempre tempo de pensar e repensar. Calvino me dá tanto prazer na leitura que no fim do ano
passado cheguei à um nível de antropofagia (e desespero com o fim do ano) que tentava ler três obras suas ao mesmo
tempo. “Absurdo” - me disse outro bom amigo: “o fim do ano não é o fim dos
tempos...”. Recomecei uma por uma de novo, ele estava certo. Penso que tampouco
o começo do ano deve ter que ser o começo dos tempos, onde tudo se transforma,
a vida ressurge das cinzas e num passe de mágica o mundo fica bom, as contas
são zeradas, e tudo o mais.Quem dera. Mas se é uma desculpa a mais para sonharmos, qual o
problema também?
Olhei pro céu e vi um lindo bando de
urubus rondando e comendo a carniça do passado. Éramos nós. Bela bosta. Na natureza tudo se
transforma.
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