O cheiro do ônibus que me leva a Itapira é sempre o mesmo. Mudam de tempos em tempos as frotas, modernizam-se ainda que lentamente os autos de passageiros da rica Viação Cristália - "a mais moderna da região, quiçá de todo o estado de São Paulo" - mas nada explica este cheiro idêntico que possui o sempre pontual ônibus das 6h25, que nestes dez anos de exílio me carrega volta e meia da cidade grande à minha terra natal. O mofo das minhas memórias se mistura à umidade do ar-condicionado, aos ácaros do estofado, aos perfumes desta gente trabalhadora cedo-da-matina e ao amarelo claro do tímido sol que nasce entre os prédios, Jacarandás e Flamboyants da cidade de Campinas. Adentra meus pulmões asmáticos e percorre o sangue feito limo nos azulejos do passado. Estanco. Dez anos se passaram no breve tempo de uma inspiração.
A idade avança na quarta marcha, neste ir e vir que parece eterno. Só este cheiro me garante que ainda pertenço a algum lugar, ou melhor, que um lugar em mim ainda pertence a alguma parte do mundo. O resto pertence ao mar, para beira donde fui um dia para nunca mais voltar, citando Caymmi, ou o mar que não me pertencendo me fez Capitão-de-longo-curso, para citar Amado.
Fosse eu marinheiro, seriam infindos os portos e as conquistas heroicas, mas sendo eu poeta, são infindas apenas as histórias, as paixões e a permanente vontade de partir. Pensando bem, isto também é só uma história de marinheiro, de viajante ou de poeta. São todos feitos igualmente do mesmo impulso e da mesma saudade. Feitos do arrepio que dá este mesmo cheiro.
Uma hora e meia de viagem depois, adentro a cidade por sua única avenida. É tanto silêncio que mais parece um interior de útero, ou um fundo de mar. Dentro de mim explodem canções. O violão de meu pai, a sanfona de minha avó, o pandeiro do avô morto e as tias em coro na Fazenda Carlotinha. É uma batucada que se faz, é meu coração. A avenida se transforma nos morros gramados e eu escorrego sentada num pedaço de papelão, com as bochechas pegando fogo de tão vermelhas.Depois vou até a porteira e volto correndo. A porteira fica longe. Depois da porteira a estrada, depois da estrada o mundo, aonde só os passarinhos conseguem ir e depois voltar contando as novidades. Boi fujão não volta. Nem cavalo xucro, nem criança. Criança o homem-do-saco leva, se não for roubada antes pelos ciganos. Isto sem falar nos casos muito misteriosos de aparição de Pirigüila.
A idade avança feito um rio que corre sem barragem e sem volta..Piso o chão da minha terra.Um dia hei de voltar à minha terra nas asas de um pardal, numa chuva chegada do litoral ou na poeira das rodas de um ônibus da Viação Cristália, às 6h25.
Legal, me fez pensar... Entre indas e vindas, algo retorna, se repete infinitas vezes de maneira idêntica: a vontade de partir do poeta, o cheiro do ônibus... Lacan disse, "O Real é o que retorna sempre no mesmo lugar". É meio por aí, né, "Viação Cristália". Bruno.
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