A cidade amanheceu branca. O vendaval da noite anterior somou-se ao calor abafado que mais pesava e apressava o final da semana. "Chega logo, sexta-feira". Na madrugada uivos de agonia chamaram raios e trovões. Esses lobos domésticos, pobrezinhos, sem nem sequer um campo para enlouquecerem-se em matilha. Como fizeram-se sonoros em seu desespero! Demorei muito a pegar no sono, preocupada com o sono que sentiria de manhã se não dormisse logo. E assim foi,evidentemente. Na manhãzinha meus olhos grudados acordaram sem coragem para uma cidade viscosa como a pele e o sangue dos paraibanos, cerenses,paulistas, gaúchos, mineiros - todos cariocas.
A cidade tão populosa tinha as calçadas vazias. Muitas foram as crises de enxaqueca, dor de barriga, febre alta, suspeita de dengue. Muitas, que coincidência. Que dor mais insuportável a de ter que ir trabalhar num dia destes.Impossível povoar as ruas cheias de corredeiras ferozes e vivas, que com intenção de vingança enchiam as calçadas do lixo podre resultante da vida humana na cidade. Praças, bancos, estabelecimentos vazios, a não ser por um ou outro retardatário da noite anterior, que sem perceber que o sol hoje não viera, acreditou que a madrugada simplesmente tinha esquecido de acabar, e ainda era tempo para outra dose. "Esfriou, me traga um conhaque".
As ruas assim, no abandono de um dia de chuva são demasiadamente melancólicas. Engoli o choro com um pensamento absurdo de que todos haviam sumido e só restava eu sob a água celestial dos tempos. Não acreditei no pensamento de fato, mas tive medo da força que teve. Que triste foi o meu lamento - "Eu gosto tanto de gente, cadê a população?" .
Mas uns olhares atrás de cortinas logo me fizeram recobrar a consciência. Estavam apenas todos em suas casas. Havia pessoas, elas só não rodavam por aí. No aconchego de seus lares quentes, com seus filhos e cafés quentes, chocavam o amor que iria às ruas em hora mais propícia, quando a própria Natureza não os contrariasse, quando o céu não desabasse assim tão raivoso. O céu das emoções de Deus. Permitindo-me ainda guardar o resto de sonho que havia nos olhos, transfigurei-me neste momento em rua, alameda, poste, jardim, poça imunda. Tornei-me eu mesma o corpo da cidade. E deparei-me no Largo do Machado com meu coração quietinho, fonte verde, musgulenta e inérte apesar da vida que abriga, apesar de imponente construção: Um coração cheio de amor por dentro, mas em cujas artérias não passeia nem sequer um glóbulo vermelho enquanto não estiar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário