terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Segundo Delírio - Boi, boi, boi.

Brincávamos de desviar da rasante dos morcegos que viviam no forro, quando um forte barulho veio do andar de baixo. Debrucei-me na grade de madeira podre e bamba do mezanino, mas nada vi a não ser a mesa de bilhar e os sofás um pouco fora dos seus lugares habituais. De repente, gritaria. Portas bateram, vidros caíram e minha tia muito nervosa tentava chamar-nos do lado de fora da outra janela, aquele lado dos morcegos.
Todos tinham olhos duros de espanto e surpresa.
Tornei olhar para baixo pela grade do mezanino e lá estava um enorme touro preto, de chifres pontiagudos, bufando de um lado pro outro. Devia ter entrado sem querer numa corrida e não conseguia sair da casa, pensei. Mas o touro tinha uma fúria violenta, tomava distancia antes de se lançar certeiro com os chifres sobre a mesa, os sofás, os objetos todos, que em segundos se tornavam destroços.
Nossos olhares se cruzaram por um instante, o meu e o da besta-fera: mataram meu filhote, disse ele. Mataram meu filhote mais manso. Eu com medo e piedade disse que sentia muito, mas que, por favor ele parasse com aquilo, pois não éramos culpados de nada.
Disse-lhe que essa era a natureza das coisas.
O touro pareceu acalmar-se, e parou com a cabeça baixa. Então novamente virou seu olhar em direção ao meu e pedindo com uma calma enternecedora disse: Você está certa, menina. É a natureza das coisas. Desce aqui que eu quero que você me leve até o pasto, não consigo sair com a porta fechada.
Sob os gritos das outras crianças, que não estavam entendendo nada, desci a escada ofegante, com minhas pequenas pernas infantis. Caminhei diretamente para a porta e coloquei minha mãozinha branca no trinco. Ouvindo os passos do animal vindo em minha direção, respirei fundo e virei para olhá-lo, de costas para a porta ainda fechada. O bicho tinha mais de três vezes o meu tamanho e seus chifres eram como punhais de ossos retorcidos. Olhou-me fundo nos olhos. Entenderão seus pais, menina, que esta sim é a natureza das coisas.
Deu dois passos para trás e mirou minha barriga. Com o estrondo da porta de madeira se despedaçando atrás de mim, veio aquele clarão. E aquela canção.

“Boi, boi, boi... Boi da cara preta...”

Um comentário:

  1. Iaiá!
    Não sei se dá pra sentir saudade de alguém que a gente viu uma vez só, mas se der, tô com saudade de você :) Qualquer dia bem que podíamos marcar algo, pena que não dá mais pra ser o bondinho né.

    Gostei muito do teu texto. É forte, de certa forma cruel, e não consigo explicar exatamente mais o que ele me passa, mas de alguma forma ele faz um sentido pra mim. Eu gosto muito de textos assim. Bom mesmo :)

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