segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Segredos de vida breve - ou - Vida de mãe no cárcere.

Fui presa injustamente aos vinte e três anos, grávida de duas semanas de um homem que guardava drogas embaixo do mesmo colchão velho em que me tinha com violência nas noites de bebedeira. Eu não posso dizer que não sabia. Sabia sim, mas era ele quem botava o de comer na mesa e eu nunca tive peito de negar. Ainda mais agora, com criança no bucho. Disseram-me cúmplice. Fui algemada sem resistir, embora chorasse muito. " Estou grávida, pelo amor de Deus não me batam" - disse eu. "Devia apanhar mais ainda por colocar mais uma criança no mundo, sua vagabunda" - respondeu a agente carcerária. Me calei. Ela estava certa. Eu não queria ter pegado barriga de novo, já tinha tirado dois naquele mesmo ano, eu tomei tudo que foi remédio pra tentar tirar. Mas a menina vingou, não quis sair do bucho de jeito nenhum, fui internada passei mal, sangrei. E ainda assim la ficou a bichinha, coitadinha. Ela já devia saber que sua companhia era o que ia me salvar da imensa solidão do primeiro ano e meio de gaiola.
Minha menina só me trouxe sorte. Por estar grávida, tive direito (é verdade, pela primeira vez na vida entendi o que era ter direito à algo) de ficar em uma prisão especial, um lugar agradável com camas limpas e espaço ao ar livre. Foram nove meses de paz. Tão boazinha minha neném. Quando me via entediada, dava chutezinhos, me causava um enjôo, uma dor qualquer que me lembrava que eu estava viva e de que era necessário estar viva. Mais por ela que por mim, é verdade, por ela eu tinha razão agora para ter vontade de continuar.
Nasceu dia 16 de dezembro de 1999. Sagitariana como minha mãe. Foi um parto tranquilo, não deixei ninguém me dar anestesia nem nada, queria sentir cada arrepio de dor que ela me causasse, a carne rasgando para ela sair. Mas a minha menina era tão boazinha que achou que de doída já bastava a minha vida e simplesmente nasceu como quem desliza em um escorregador, nasceu brincando, eu tive umas contrações, fui para o leito, veio a médica e a segurou numa manobra rápida, quase que a pequenina cai no chão de tão miúda. Chorou um chorinho manso, agudinho, e aquele choro foi mais que música. Aquele choro da minha filhinha me fez chorar de alegria também. Depois disso, eu sabia, teria apenas seis meses com ela, antes que fosse entregue a familiares ou adoção. A partir daquele instante, cada dia era um dia a menos, cada dia era uma chance única de amar. E nos tornamos tão cúmplices!Eu tinha tanto leite! Contei mil vezes a ela toda a história de como tínhamos ido parar lá na prisão, da sorte que ela tinha me trazido, do amor que tinha me ensinado. Havia uns livrinhos numa biblioteca que podíamos usar e todos os dias eu lia pra ela, sempre fui muito boa em leitura e escolhia para contar-lhe as historinhas mais bonitas. Histórias mais bonitas que a nossa, para que ela soubesse que apesar de a minha vida ter se guiado daquele modo torto, a dela poderia ser bem melhor. Eu desejava pra ela uma vida tão imensamente melhor!
Os meses passavam rápido demais, as horas eu contava, vigiava, querendo segurar os segundos, querendo que os relógios atrasassem, o tempo parasse, alguma lei mudasse e eu pudesse tê-la por mais tempo junto a mim. Me desesperava não saber se alguém de minha família poderia ficar com ela. No primeiro mês de vida perdeu o pai. Foi assassinado dentro de casa, a facadas, por um policial que ficou sem o pagamento. Graças a Deus, pensei, não estávamos lá. Senão também nós teríamos morrido, ela não ia nem ter tido o direito de viver. Que sorte minha menina me trouxe, foi Deus quem quis assim.
Já com dois meses de mãe e filha, eu ainda não tinha um nome para dar-lhe. Chamava-a de minha menina, minha neném, meu amor, meu amor. Pensava em Vitória, mas já conhecia duas bebês chamadas Vitória, filhas de colegas de cárcere. Pensava nuns nomes de artistas, de personagens de novela, mas nenhum parecia dar conta daquilo que era muito provavelmente a única coisa que eu poderia dar a ela em toda nossa breve vida juntas. Um dia, vi um filme estrangeiro e nos créditos finais achei o nome da minha rebenta: Linda.
Não havia nome melhor. "Linda, minha filha, é o que você é, o que espero de tua vida e de tua sorte". Registrei-a apenas Linda da Silva. O nome do pai não carecia. Também não batizei, porque queria que ela fosse livre para escolher sua religião, sei lá, as igrejas às vezes são cruéis com as pessoas. Não, a minha menina vai saber de si.
Quando ela estava com cinco meses de vida, nós duas somando um ano e dois meses de cárcere, decidiram que ela teria que ir para adoção, já que eu não tinha ninguém na família que pudesse ficar com ela. Minha irmã com seis em casa, meu irmão morando em Ilhéus, na Bahia. Minha mãe morava com minha irmã. Elas até tentaram, mas não puderam pegar por falta de condições, a assistente social foi lá para dar o atestado e quase que leva dois da penquinha da minha irmã embora. Uma miséria desgraçada, e eu fiquei sem a minha companheira. Sem o meu amor, sem sorte.

" Minha filha, já fazem seis meses que você nasceu. Hoje eles vêm te buscar. São oito e meia da manhã e dentro de meia hora a mamãe vai te colocar aquele vestidinho amarelo que você adora e vai dar você para a moça levar. Lembra aquela moça boazinha que de vez em quando te traz presente? Bem, você vai com ela. Eu vou colocar na mala a sua chupeta, seu mamá e a bonequinha de pano vai contigo. Eu vou ficar por aqui e esperar a morte chegar. Eu só existi enquanto estive contigo, meu amor. Apenas por ti eu vivi. Agora o ponteiro andou mais um pouco, falta menos. Deixa eu te cheirar, todas as dobrinhas, eu queria tanto guardar este cheiro num pano. Posso ficar com teu paninho? Obrigada meu amor, você sempre tão boazinha com a mamãe. Vou te cantar a sua canção pela última vez: Linda, te sinto mais bela... te fico na espera, me sinto tão só, mas o tempo que passa... - Desculpa se a mamãe perdeu o ritmo. É que eu estou engasgada. Não filhinha, não chora. Você vai ser adotada por uma família rica, vai ter a chance de estudar, de ter a vida que mamãe não teve. Vai ter um homem bom para ser feliz com ele, vai ter meus netos lindos e bons como você foi para mim. Mas você não vai se lembrar de mim, o que vai ser bom, para não sofrer. Mesmo porque, não precisa lembrar, não vai valer de nada. Assim que você se for a mamãe vai morrer, mas não se preocupe, eu não estou triste, estou agradecida. Eu só vivi por ti e para ti. Minha vida durou este ano e meio, e eu fui a pessoa mais feliz na Terra. Eu sim, fui feliz. Morro realizada por cada sorriso teu. A porta abriu, está na hora. Eu já comecei a sangrar meus últimos suspiros de vida. Não neném não chora. Cuidado com ela, cante para ela dona moça, leia uma historinha. Ela gosta de bichos, ela é uma menina muito boa, não entrega ela pra qualquer um, viu? Viu dona moça, ei! Ei! Eu estou falando com você, pelo amor de Deus eu imploro, me deixa ficar com ela, deixa... Não dá ela pra ninguém ruim, por favor, deixa ela com uma familia boa! Filha, filha! Linda, eu só vivi por ti. Você me salvou meu amor! Eu te amo, não chora, eu te amo demais. Moça, o nome dela é Linda da Silva, leva o registro dela, eu fiz tudo certinho, leva. Leva meu coração, atravessa a grade e leva. Filha, você vai conhecer o mundo lá fora, o mundo é uma coisa linda como você. O mundo vai ser bom contigo, meu amor. "

A grade fechou. Que luz é aquela? É Deus, veio com seus anjos de luz! Me leva, Senhor, me leva. Que ao menos esta dor passe, me leva pra morar no céu. Me leva que eu vivi na Terra por um ano e meio e hoje eu quero morrer. Traz na tua bondade o perdão pelos males que devo ter causado, mesmo queredo sempre seguir o caminho do bem. Me carrega logo, me tira deste corpo pesado onde bate um coração e onde um ventre um dia gerou a coisa mais bonita que o senhor colocou no mundo.
Me leva, Pai. Já é hora. Eu já fui feliz.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Previsão do Fim de Ano.


A chuva - sim - vai cair e molhar a todos. Primeiro, por privilégio adquirido, uns passarinhos de hábitos noturnos, uma torre de aeroporto, um prédio de vinte andares. Depois uma árvore seca e alta, seguida por uma aconchegante e gorda mangueira escorrendo ao caule, aos frutos, morcegos, moscas, sapos, grama – até a terra.
E vai molhar ainda neste entremeio os cabelos das ruivas, uma aba de chapéu. Desenhar auréolas num rio, entrar pelos bueiros, os vãos, as vidraças com buraco. Vai parar sobre uma telha e infiltrar-se vagarosa e definitivamente. Vai molhar uma roupa seca no varal e arrancar um suspiro cansado de alguém que não chegou a tempo, vai entrar pelo rombo causado pelo fogo de quinta-feira, embora vá também ajudar a apagar outros incêndios. Vai encher as piscinas de limo, causar uma dengue no abandono do dia seguinte, deixar um par único de sapatos cheirando a seco-à-sombra pela semana toda, ainda que permanecendo, na verdade (isto é, aos pés), úmidos.
A chuva vai encher um poço, vai doar sangue às flores e às também e não menos importantes hortaliças e frutíferas, todas absolutamente necessárias em igual proporção. Vai apagar uma fogueira, confirmando a profecia ritual. Não vai apagar outra fogueira, repetindo o feito. E depois de tudo isso, vai embora sem previsão de volta, deixando todo o entorno transformado, a textura do chão diferente, a cor das coisas escuras mais escuras, a das claras transparente.
A chuva vai cair e vai derrubar consigo barrancas, vai levar o ano que finda. Vai lavar minha alma suja pela poeira de tudo o que eu planejava e não cumpri. Fica pra conta do ano que vem. A chuva vai cair e molhar a todos nós, que vindos do pó à lama tornaremos, que vindos da água aos céus ascenderemos, na barra da saia de Ewá em forma de vapor.
A chuva vai cair e molhar todos eles e todos nós. Isso mesmo com céu aberto se pode ver, mesmo sem sombra de nuvem. E tudo isso porque o ano finda, a televisão anunciou.
O ano vai acabar e a chuva vai cair. Certo. Mas não vai ser hoje.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Nine Out of Ten.

Veja meu amigo, o desespero em que ela me põe. O que foi que eu fiz? A esta altura do campeonato, fui cair nas unhas desta tigresa, como um anjo inocente que ao tentar breve vôo se lança ao fogo infernal, à prisão de uma paixão insana. Aquela vagabunda, piranha. A loira maldita é gostosa como o quê. A gatinha neném é rainha de tudo. E eu, vagabundo cascudo, entrei pelo cano com essa mulher.
Das suas pernas eu tirei a coragem para abandonar a casa e o casamento. De seus seios eu tirei alimento pro corpo e pra alma, me embriaguei do leite ralo de uma ilusão. Carimbei os papéis de uma jura de amor eterno, que fui eu mesmo quem jurou pensando que a jura era dela. Eu assinei foi um atestado de idiota, eu fiz de tudo por essa vaca e, aliás, tenho feito. E não consigo deixar de fazer! Acho que estou louco! Não consigo deixar de fazer, porque eu a quero de qualquer maneira, eu a quero sem medo e sem pena, eu a quero ao meu lado, eu quero vê-la de quatro. E por trás. Afogada por mim. E o pior de tudo isso é saber que a imbecil me ama. Mas é filha da puta tão burra que nem disso se dá conta... E agora olha ela aí, entregando pra outro o que é meu, saracoteando com minha dor, se exibindo, me fazendo ciúme, um ciúme doido e doído, um ciúme de matar. Olha ela aí leiloando o que me prometeu por alto custo. E um custo que venho pagando a pesadas prestações, uma coisa de cada vez. A casa, o casamento, a moral. Logo eu, pra quem mulher não falta, logo eu, que sou pica das galáxias, um amante das mulheres, de verdade, um amante das mulheres. Cada uma eu amo e amei sempre com gosto, embora poucas vezes tenha me largado à deriva dos desejos femininos, dos perigos que eu sempre julguei conhecer decorado e salteado, e agora – surprise, baby! – eu estou fodido.
Eu vou desistir desta merda, eu vou largar de mão. Eu juro. E ela que vá tomar no cu a piranha, ela que vá pro raio que a parta. Ela que se lasque, porque eu vou cair de pau, eu vou à forra, vou comer a metade do Rio de Janeiro que ainda não comi e também não terei mais coração. Eu juro, não terei mais coração. Deu pra mim de amor, deu pra mim de mulher. Não, meu caro, eu não me transviei - você sabe que isso é impossível. Mas porra, elas estão todas loucas e eu já estou de saco cheio, quer saber? Com sua licença vou citar Caetano, I`m alive and vivo, muito vivo. I`m in the age of gold, baby. Nove em cada dez mulheres me fazem ficar excitado só de olhar. E não vai ser esta, não vai ser esta vaca quem vai me fazer penar, não vai. Agora é hora, I`m free as a bird baby, I`m lost. I`m gonna hit the road and won`t come back no more. Rock it, baby : A gata perdeu e quem ganha é a população feminina do centro ao alto Leblon. E antes que as praias desapareçam na subida da maré, eu vou humilhá-la pelas redondezas, vou tirá-la de mim. Eu não sou de ameaçar. Eu vou lá e faço. Eu juro.
E eu posso até morrer de dor, que não estou nem aí. Que mais me resta além da liberdade?
Que mais me resta a não ser rezar para que ela mude, para que se manque... Mas é tão imbecil minha amada, é tão abusada... Só pode ser coisa da idade. Que mais me resta além de esperar impacientemente que ela me mande uma mensagem de texto agora confessando que me ama e que será minha escrava eternamente, que sucumbirá a todos os meus desejos.
Que será minha flor, meu bebê. Que dirá que sim.
Nine out of ten love stories make me cry. É meu chapa, está provado e comprovado. I`m alive and vivo, muito vivo.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Óleo e Água

Somos os dois
Feito óleo e água
Nada mistura
Nada estraga.
Bem pra água pura
Ou óleo de oliva
Haja secura,
Haja saliva!
Gotas douradas
Fundo transparente
É tão bonito...
Mas ninguém entende
Como pode ser?
Aquoso oleoso
Um duo imiscível
A dor e o gozo
E o irresistível
Que há em fazer
O dito impossível
Acontecer.

domingo, 4 de dezembro de 2011

"Doutor, eu não me engano..."

Quatro de dezembro, Rio de Janeiro. Dia de Iansã e Santa Bárbara, dia da decisão do campeonato brasileiro de futebol de 2011. Na Cidade Maravilhosa desde quarta-feira todo mundo já parece estar em clima de final, os bares perfeitamente cheios, as apostas e provocações, as camisetas dos times levadas nos ombros por já estarem molhadas de suor, fazendo com que desfilem os morenos pelas ruas pra lá e pra cá, pele à mostra, tirando o sossego da gente. Futebol, fim de ano e verão. (Um clima bom da moléstia...) Tudo corria para ser mais uma final memorável, o Vasco concorrendo ao título após uma campanha de sucesso como não havia há tempos no time. Mas ficou ainda mais memorável porque na manhã de hoje, antes mesmo de serem iniciados os preparativos do almoço de domingo, veio pelos jornais e canais de TV a triste notícia da morte de Sócrates, o Doutor. Bradavam a morte de um craque, um gênio do futebol brasileiro, e - até eu que não entendo de futebol sei disso - um dos últimos representantes de uma era de ouro no esporte mais aclamado do Brasil. Magrelo, bêbado, chegado à samba e à comunismo. Um herói brasileiro típico, Macunaíma, torto. Destes que a gente gosta de cantar. Desencarnou nesta madrugada padecido de uma cirrose. Antes do sol chegar foi carregado numa cerimônia festiva pelos braços de Iansã, que além de ser a dona dos mortos é também dona do vento e dos lampejos, tempo e idéia, os mesmos impulsos de criatividade e genialidade que fizeram deste homem um doutor aos olhos de um país que tem no futebol talvez o mais importante símbolo nacional. Coladinho ao samba, que no fim é tudo fruto da mesma coisa, da paixão e da raça, do suor. Mas é dia de final, e a tristeza só aumenta a gana. No Rio tem Flamengo e Vasco, em Sampa Corinthians e Palmeiras. Só clássico. Dizem que o homem era corinthiano. Gaviões, Camisa 12, Pavilhão. As torcidas pintam o estádio de preto e branco, representando a dualidade das coisas, os momentos bons e ruins, a vida e a morte. Porque quem tem veia de maloqueiro sofredor bem sabe que vida é assim, que hoje tem, amanhã não (tá ligado?). O bagulho é doido e o processo é lento. Um minuto de silêncio em nome de Sócrates, e há milhares de punhos fechados, erguidos aos céus em sua homenagem. Vai com fé, Sócrates, que hoje vamos todos beber em teu nome. Que hoje o Coringão não perdoa, vai ter porco assado e torresmo de petisco, no caso de o Mengão não preparar o bacalhau. E nada de gol. As bolas ocas no placar parecem dizer que ninguém tem o direito de manchar o nome e a glória daquele que mandava até de calcanhar. Em torneio de pontos, mais valia um zero a zero. Nenhum gol feioso ou meramente técnico valeria a pena, deixa assim. Deixa no zero a zero que com Sócrates já ficou combinado e é na base do tudo ou nada. Termina a partida no Rio e em Sampa já deliram os gaviões. Frenéticos por uma vitória sem gols, apenas mais uma pra confirmar a controvérsia das coisas. É o preto e branco na avenida, com pancadaria, cartão vermelho e o cacete, do jeito que os corinthianos gostam, muita gritaria e muita emoção. E eu achei lindo e engraçado, ao ouvir os fogos e o auê da rua, aquele grito que subiu com o vento de Oyá e entrou pela janela, pois me pareceu como um sopro em coro, uma só voz independente de times, de estados ou partidos. Parecia uma só voz macia a cantar aquela velha marchinha de carnaval que sem querer prestava a sua homenagem singela: "Doutor, eu não me engano... O coração é corinthiano... "