sexta-feira, 3 de abril de 2009

Sonho

Em sonho, vi-me numa senzala de tempos atrás. Exuberante, uma Rainha africana dançava a dor do cativeiro. Zarina: mulher de ouro. Uma Oxum que reluzia da pele negra um ofuscante brilho dourado.
Além da visão, contudo, havia um cheiro. Cheiro de banzo e sangue, um cheiro que pesava, de uma melancolia engolida ao seco da farinha de mandioca no ar. A poeira levantada pelo dançar dos pés daquela musa, tornava nebulosa a feição de seu rosto, mas eu sentia algo de íntimo, um carinho prazeroso, como se pudesse ter o privilégio de rever uma pessoa querida que não volta mais.
O batuque aumentava ao mesmo passo do rodar daquela saia. Os tambores, etéreos, animais sem vida porém dotados de voz, assemelhavam-se aos homens que os empunhavam e era mesmo como se somassem, através do som, o barulho de suas vozes ao silente corpo em movimento dos batuqueiros. O tambor e o homem se tornavam um só ente, como se emprestassem, um do outro, a voz e a vida que lhes tinham sido retiradas.
Via-me em sonho a mim mesma como expectadora. Como se fosse eu feita de sonho e meu sonho da mais real matéria. Como se fosse a cena, o terreiro e a Rainha africana que sonhassem comigo ali, e não o contrário.
Como ficara parada olhando, não pude ver o que havia por detrás das paredes muito marrons, talvez feitas de barro, nem quem foi que - chegando pelas minhas costas - me fez sentir um frio, como se fosse eu feita apenas de sonho, e me atravessasse. Acordei num susto, como se acordar para a matéria fosse necessário, ou jamais recobraria minha alma novamente neste corpo que escreve.
Sonhei que era feita de espírito, e olhava a partir de um todo, e não somente a partir dos olhos.
Dela, a Rainha negra, linda e de pés descalços, acordei apenas sentindo uma imensa saudade.

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