terça-feira, 21 de abril de 2009

O tempo e o artista ( como já disse o grande poeta).

A arte, ao artista expõe. É uma sátira ao íntimo, um delicado escracho.
Uma vez feito tinta, feito acorde ou palavra, tudo aquilo o que o artista é se esvai de si mesmo e preenche a grande tela: Te enganas em pensar que serás infinitamente criador da vida!
A arte não aumenta, meu amigo!Ela diminui, sua pelos poros a cada pincelada, a cada nota.
A arte é apenas o efeito de dissipar-se.
É por isso que os velhos vão perdendo o vigor de seus músculos, a cor dos cabelos e enfraquecem aos poucos a voz. Tu, que és artista. Reparas num velho poeta a construir um barco, vês os lábios murchos a sorrir. Tu, artista. Que te expões e te esvais, que murchas. Tu que és pescador, vês o velho e pensas:

Quanta beleza já emprestaste ao mundo!

quinta-feira, 16 de abril de 2009

O rio e a margem

À margem do que sinto por ti, está um pesar por coisas menores. Está à margem, pendurado em uma àrvore de finas raízes, o enxame do ciúme. Está também à margem a saudade, porque te tenho em minha canoa de um pau só. Está à margem o ouro, porque num rio caudaloso, tudo se carrega, porém nada se leva.
Está à margem tudo aquilo que não bóia, não flutua, tudo aquilo que não é natureza, que não é beleza, que não é amor.
Neste mesmo rio, ao qual as margens estáticas observam passar, moro eu, sereia d'àgua doce, moro eu, sua mulher. E este rio, nos conduz à vida, à queda e à cachoeira. Este rio é nossa vida.
À margem do que sinto por ti, está tudo aquilo que vivemos e aprendemos a deixar passar...e uma vez feitos àgua continuamos, leves, molhados, ferozes. Continuamos, carregando aquilo que se deve, e cuspindo à margem a tristeza, a nossa ida infância, e tudo aquilo que não é natureza, que não é beleza, que não é amor.
Uma vez feitos àgua, feitos rio, nos amamos eternamente. Pois o mesmo rio nunca passa duas vezes pela mesma margem, e a margem nunca mais será a mesma depois do passar do rio. Uma vez feitos àgua, feitos rio, jamais estaremos à margem de nós.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Rima Chula

Eu ando tendo um jeito pra homem que tem defeito
Eu ando tendo um tato pra homem compromissado

Os bem intencionados, nunca me pegam de jeito
Os mal intencionados, estes só me querem de quatro

Mais
vale
o
efeito... todos iguais, de fato.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Escrever, pura e simplesmente
É um ato de rebeldia
Pois quem escreve, é para que o dia
Clareie o escuro de seu penar...
Escrever é se comunicar
Pois nem os diários são escritos à toa
Quem textualiza, se doa
Para quem bem ou mal quiser interpretar
Escrever, portanto, é mais que raciocinar
É o inútil esforço de gritar
Um grito fraco e rouco
(Para quem nem ouve tampouco)
Quem escreve, nada pede
Senão um par de olhos desatentos
Que socorram o seu lamento
E levem na alma de outro pra morar
Escrever, pura e simplesmente
É um ato de rebeldia
Quem me dera, poder um dia
Ter tal fogo em meu peito dormente!

Sonho

Em sonho, vi-me numa senzala de tempos atrás. Exuberante, uma Rainha africana dançava a dor do cativeiro. Zarina: mulher de ouro. Uma Oxum que reluzia da pele negra um ofuscante brilho dourado.
Além da visão, contudo, havia um cheiro. Cheiro de banzo e sangue, um cheiro que pesava, de uma melancolia engolida ao seco da farinha de mandioca no ar. A poeira levantada pelo dançar dos pés daquela musa, tornava nebulosa a feição de seu rosto, mas eu sentia algo de íntimo, um carinho prazeroso, como se pudesse ter o privilégio de rever uma pessoa querida que não volta mais.
O batuque aumentava ao mesmo passo do rodar daquela saia. Os tambores, etéreos, animais sem vida porém dotados de voz, assemelhavam-se aos homens que os empunhavam e era mesmo como se somassem, através do som, o barulho de suas vozes ao silente corpo em movimento dos batuqueiros. O tambor e o homem se tornavam um só ente, como se emprestassem, um do outro, a voz e a vida que lhes tinham sido retiradas.
Via-me em sonho a mim mesma como expectadora. Como se fosse eu feita de sonho e meu sonho da mais real matéria. Como se fosse a cena, o terreiro e a Rainha africana que sonhassem comigo ali, e não o contrário.
Como ficara parada olhando, não pude ver o que havia por detrás das paredes muito marrons, talvez feitas de barro, nem quem foi que - chegando pelas minhas costas - me fez sentir um frio, como se fosse eu feita apenas de sonho, e me atravessasse. Acordei num susto, como se acordar para a matéria fosse necessário, ou jamais recobraria minha alma novamente neste corpo que escreve.
Sonhei que era feita de espírito, e olhava a partir de um todo, e não somente a partir dos olhos.
Dela, a Rainha negra, linda e de pés descalços, acordei apenas sentindo uma imensa saudade.