Estou de volta ao primeiro palco de minha vida, no porão da velha igreja onde a escola era sediada. Canto diversas canções de vestido branco sobre dois botões de seios, danço e canto sem parar, prenhe de uma liberdade e leveza que jamais possuí. Vejo do palco o pai na terceira fila, a mãe em pé ao seu lado e ao fundo, como quem apenas espreitasse, o avô que não convidei para a estréia. Jamais me perdoou. Em delírio, perdoava.
Corte: estou um pasto pedregoso e cheio de vacas leiteiras, dentro da caminhonete de um senhor desconhecido, mais velho que meu pai e mais novo que meu avô. Olho as vacas no pasto enquanto a voz estranha do homem, que não vinha de sua boca, mas sim de toda parte, me responde a pergunta não-feita: ele era da macumba, sempre foi da macumba. Se não acredita te levo a quem te conte. De repente estamos ombro a ombro naquele elevador minúsculo, claustrofóbico como a sala de carpetes da casa da Avenida Pauleti. Descemos, descemos, descemos, quase sem ar. No fundo do mais profundo, está a criada cor de café com leite sentada na mesa redonda enquanto come bolacha maizena. É verdade, minha filha, ele era da macumba, sempre foi. E você não escapa viva. Peço para ir ao banheiro antes que mije as calças. Vou, ela fuma. Volto, quero partir, o elevador está enguiçado. Quando para assim custa a voltar a funcionar. Preciso partir. Sem dúvida nem desamparo empurro com meus braços o teto com uma força imensa, uma força que jamais possui. A máquina anda, lá em cima me espera o senhor de meia idade.
- Me dá uma carona?
Ele me leva até a porta da mata fechada, para onde caminho sem olhar para trás. Encontro a trilha,subo dois degraus de pedra, à minha esquerda estão duas meninas muito pequenas e sorridentes. Curiosas, brincam comigo e eu com elas. Chegamos juntas à uma imensa porta feita de musgo e fluorita. Em frente à porta, pego um punhado de pétalas nas mãos e sopro no rosto das meninas. Elas desaparecem. Viro o trinco da porta, avisto o abismo, um passo à frente e aquele clarão.
sexta-feira, 16 de setembro de 2016
terça-feira, 31 de maio de 2016
Canto escondido
Esse é o
canto mais escondido da casa
O canto dos
fundos, aonde ninguém vai
O canto das
culpas, o canto secreto
O canto da
falta sentida do pai
É este o
das sombras, o mesmo dos ventos
O canto do
tempo e dos temporais
O canto
mofado, doente e sem sol
O quarto do
engano, das horas sem paz
Este é o
canto mais escondido da casa
O canto
sombrio, o das sete chaves
Ao qual não se
deve jamais retornar
Aonde se vai
parar por descuido,
O canto
onde o uivo da fera é mais forte
O canto
onde os vivos
- e os vivos somente -
Têm medo da
morte.
domingo, 21 de fevereiro de 2016
Uma lição dos passarinhos
Para Luíza Miller, em seu aniversário.
Muitas
vezes me ocorre o desejo, olhando de minha janela, de pegar um pássaro com as
mãos.
Outro dia
entrou atropelada uma imensa borboleta e pousou num canto do
quarto. Vi que tinha uma pata quebrada e imaginei que por isso estivesse
desorientada. Tentei com muito cuidado pegá-la com um lápis, onde talvez
pudesse se apoiar, fazendo uma espécie de bengala para aquela pata que – em
minha cabeça – lhe fazia falta. Porém o instinto da alada era mais forte e
quando a toquei ela esboçou um vôo, um vôo encantado onde me mostrou todo o seu
branco e turquesa que estava oculto pelo lado de fora das asas marrons e pretas
recolhidas. Tomei um susto tão grande com sua beleza que comecei a tentar
acalmá-la, que bobagem, cantando baixinho e conversando com ela. Mas a
pobrezinha se debatia desesperada e tentava em vão fugir do quarto e suas
imensas paredes. Aquela borboleta era eu mesma tentando sair do quarto, de
minha cabeça pequena para as asas do pensamento, presas ao concreto, à luz
branca do computador, às garras imundas do capital.
Assim como
a imaginação, quanto mais eu tentava cercá-la, mais crescia o medo de pegá-la
com a mão e quebrar suas tão lindas e frágeis asas. Sabendo que não haveria
outro jeito, tomei coragem e de uma vez só a peguei bem perto do corpinho duro
e corri para a janela, onde a senti desgrudar de meus dedos. Ela se debateu
mais um pouco, como que atordoada ainda pelo susto e enfim levantou vôo, aquele
vôo lindo e inesquecível para mim, deixando o pó de sua cor em meus dedos, em
formato de coração. Quem precisa de quatro patas em
perfeito estado quando se tem um par de asas?
Mas os
pássaros são diferentes dos insetos. São quentes, carnudos e muito
sentimentais. Esses bem-te-vis que vivem na minha janela, por exemplo. Fico os
observando e me comunico com eles mentalmente quase todos os dias. Sempre
pergunto frivolidades: Como estão os céus por aí? Onde vocês se esconderam do
temporal de ontem? Bebe um pouco daquele fio de água fresca que desce a pedra
por mim? Parece tão saborosa... E eles sempre me respondem saltitantes, ariscos
e charmosos, meio me dando bola, meio não. Meio fazendo-me invejar a sua
liberdade de pássaro, a sua beleza sem fim, a sua ética. Sinto por eles tanta
ternura que essa vontade de abraçá-los me invade como aquela vontade irresistível
que os namorados têm de dizer “eu te amo” pela primeira vez. Mas como eu já disse, eles são criaturas muito
sentimentais. Agora mesmo apareceu uma curruíra e se dependurou na árvore em
que um bem-te-vi adolescente estava. Ela parecia perdida na área e logo as rãs
que habitam o côncavo da pedra começaram a avisar: Xô...xô...xô... Mas ela ignorava
e não arredava pata. Então o bem-te-vi arredio como toda criatura de sua idade
deu-lhe uma rasante e ela saiu simplesmente desconcertada em seu pio metálico
de reclamona. Tudo isso para que bem-te-vi alçasse outro vôo logo em seguida, nos
deixando - a árvore e eu - em pleno abandono. Decerto foi se juntar aos
parentes no alto azul do céu, de onde podem ver todas as bobagens que os
humanos fazem de seus dias, com semanas e fins-de-semana, enquanto eles vivem
para voar, cantar e desfrutar da criação.“Isso mesmo! Vocês é que estão certos. Aproveitem por mim!”, penso nesta
hora, e é sempre este pensamento que me demove da idéia mesquinha (que as
paixões sempre suscitam) de tê-los em minhas mãos, calmos e passivos, para
acariciar seus corpinhos e penas. Um pássaro só ficaria assim por doença ou
imposição. E isso não é amar, dizem os sábios.
Amor é quando simplesmente saber daquela felicidade nos basta.
Amor é quando simplesmente saber daquela felicidade nos basta.
Quem precisa tocar com as mãos, afinal, quando se pode tocar com o coração?
terça-feira, 19 de janeiro de 2016
Menino na Madrugada
O menino na
madrugada,
Olhos de
estrela recém-caída
Tinha a frase decorada
Sobre as moedas que pedia
“Pro café”- só repetia
De rostinho contraído
De rostinho contorcido
De filhote desesperado
Entreguei o tal trocado
Então perguntei por fim,
Do que mais que carecia:
- Pode pedir para mim!
Ele estático me olhava
Qual
olhasse um abismo do topo
- não que
nada precisasse -
Mas de tanto
que carecia,
Já não
tinha sequer palavra
A miséria
havia lhe comido até as idéias.
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