O dia cedo, a folha em branco. Nas manhãs todos os sentimentos ainda frescos, com resto de sonhos, com resto do que a noite anterior deixou de amargo na boca. Nas manhãs, quanta vontade. Os planos do dia, o café preto, o cigarro - e nele mais um dia sem cumprir palavra. Então o branco da folha, o vazio da folha. Escrever apenas porque é necessário, mesmo sem inspiração ou tema, ainda que sejam rasas as palavras para nomear tanto vazio. Ainda que morto não ressone e não escrever seja uma espécie de morte temporária, um oco na alma. Gastei as palavras, desbotei-as buscando inutilmente explicar tantos sentimentos incompreensíveis e agora me vejo largada num catre humilde, resto humano. A língua portuguesa que tanto amo me abandona neste momento, entre farelos de linguagem. Eu apenas sussurro e balbucio onomatopéica, interjeitora. Ah! Dói perder-se da língua mãe! Volto ao Nheengatu sem glória, volto como um pombo que adentra o ninho do mavioso Uirapuru na mais cantante matina.
Alguém me forneça por piedade uma palavra! Uma palavra bonita, de forma perfeita, melódica. Me emprestem uma palavra para que dela eu faça a vida, invente uma sentença ou uma reclamação. Me dêem uma palavra brasileira que por sí só defina mil outras, que se encadeie em argolas, faça correntes de pensamento. Crie uma nova epistême! Quebre todos os muros e paradigmas da nova ciência, da sempre nova ciência.Uma palavra de comando, de revolução. Uma palavra de ordem! Com efeito, que arrepie, aperte nossos corações e passos. Que carregue as multidões!
Mas que por favor, não me fale ao peito de amor. Se eu falar mais uma vez de amor não sei o que será deste resto de gente que aqui pousa no catre. Tem piedade de mim, língua-mãe, vê o quanto já estão encharcadas de graxa as minhas penas, o óleo pesado que as fez maciços blocos. Já não tenho flutuabilidade, tampouco. Volta língua-mãe, e eu prometo te louvar com novos temas, ousar tempos verbais, errar menos. Volta e eu serei sempre súdita de tua beleza coesa. Volta e me ensina, me encaminha. Que eu não fale mais de amor. Que eu abrace todos os outros temas em detrimento deste. Ou que reste meu corpo silente no catre, inútil e murmurante, cansado e desbotado, a pele sumindo, a cor faltando, até que desvaneça como hoje você se foi de mim e eu fiquei vazia.
Mas volta, língua-mãe. Para que eu não seja mais tão rasa ao ponto de só falar do amor. Volta, por piedade. Eu te amo.
quarta-feira, 21 de março de 2012
segunda-feira, 12 de março de 2012
A Lógica da Opressão
Às três da tarde engarrafamento na Praia de Botafogo? É obra ou acidente, com fortes chances de ser mesmo um acidente.
Morreu no Dia Internacional da Mulher. Era ruiva, magra, bonita. Tinha feito os pés na manicure do outro lado da rua, pintou de vermelho Nariz de Palhaço as unhas das mãos e de Renda as dos pés. Pés lindos e macios, agora frios embora estalados no asfalto quente, quase derretido. Cobriram-na com um véu branco enquanto demorava a chegada do IML - algo que a deixou parecendo uma noiva, com tapete negro ao invés de vermelho,que caminhara de encontro ao azar ao invés do amor. Vertigem. Foi oprimida por um carro em alta velocidade que desejava acelerar enquanto ela desejava passar. Nem uma gota de sangue: hemorragia interna, virou presunto.
Eu vi os olhos da morta, ví sua expressão de desencanto e resignação. Tive mais uma vez medo de morrer. Mas também percebi que morrer assim para ela não era novidade. Entendi, ela já estivera ali mil vezes antes e da mesma forma em vida. Para começar nasceu mulher e sendo mulher foi oprimida por pais, maridos, filhos e tios. Mataram já ali seus desejos mil vezes, usurparam-lhe o tempo, o sono, o visco da pele, a auto-estima. E foi oprimida pelo primeiro lugar na faculdade de direito, morreu porque era bonita e não poderia ser também inteligente, quem sabe se tornar juíza, desembargadora ou coisa afim. Se fosse, contentasse-se com a advocacia e a luta ingrata com as causas sociais. Boicotaram-na, morreu pra OAB. E morto um sonho, morto um pedaço do coração. E coração não é fígado. Não se regenera, embora aprenda a bater com menos-pedaço a cada desilusão.
Logicamente assim também oprimiu sua filha, sua velha mãe e seus irmãos mais novos. Mesmo sem querer fâzê-lo.
O ônibus oprime o carro, o carro oprime a bicicleta, a bicicleta oprime o pedestre, o adulto oprime a criança e o velho. O branco e o negro se oprimem mutuamente, o homem e a mulher também o fazem. Eu temo e muito pelas crianças, elas apenas aprendem. A menina rica oprime a babá, lhe tem autoridade. Também o faz o patrão com a babá, mas entre as coxas. O pobre oprime o rico no sinal de trânsito. A carência oprime o pobre em todos os cantos.
Se continuarmos assim, eu não sei o que será de nós. Ou vem a revolução do amor ao próximo, os nos devoraremos.
Eu temo pelas crianças, eu fico tão triste pelas crianças. Elas apenas aprendem.
Morreu no Dia Internacional da Mulher. Era ruiva, magra, bonita. Tinha feito os pés na manicure do outro lado da rua, pintou de vermelho Nariz de Palhaço as unhas das mãos e de Renda as dos pés. Pés lindos e macios, agora frios embora estalados no asfalto quente, quase derretido. Cobriram-na com um véu branco enquanto demorava a chegada do IML - algo que a deixou parecendo uma noiva, com tapete negro ao invés de vermelho,que caminhara de encontro ao azar ao invés do amor. Vertigem. Foi oprimida por um carro em alta velocidade que desejava acelerar enquanto ela desejava passar. Nem uma gota de sangue: hemorragia interna, virou presunto.
Eu vi os olhos da morta, ví sua expressão de desencanto e resignação. Tive mais uma vez medo de morrer. Mas também percebi que morrer assim para ela não era novidade. Entendi, ela já estivera ali mil vezes antes e da mesma forma em vida. Para começar nasceu mulher e sendo mulher foi oprimida por pais, maridos, filhos e tios. Mataram já ali seus desejos mil vezes, usurparam-lhe o tempo, o sono, o visco da pele, a auto-estima. E foi oprimida pelo primeiro lugar na faculdade de direito, morreu porque era bonita e não poderia ser também inteligente, quem sabe se tornar juíza, desembargadora ou coisa afim. Se fosse, contentasse-se com a advocacia e a luta ingrata com as causas sociais. Boicotaram-na, morreu pra OAB. E morto um sonho, morto um pedaço do coração. E coração não é fígado. Não se regenera, embora aprenda a bater com menos-pedaço a cada desilusão.
Logicamente assim também oprimiu sua filha, sua velha mãe e seus irmãos mais novos. Mesmo sem querer fâzê-lo.
O ônibus oprime o carro, o carro oprime a bicicleta, a bicicleta oprime o pedestre, o adulto oprime a criança e o velho. O branco e o negro se oprimem mutuamente, o homem e a mulher também o fazem. Eu temo e muito pelas crianças, elas apenas aprendem. A menina rica oprime a babá, lhe tem autoridade. Também o faz o patrão com a babá, mas entre as coxas. O pobre oprime o rico no sinal de trânsito. A carência oprime o pobre em todos os cantos.
Se continuarmos assim, eu não sei o que será de nós. Ou vem a revolução do amor ao próximo, os nos devoraremos.
Eu temo pelas crianças, eu fico tão triste pelas crianças. Elas apenas aprendem.
terça-feira, 6 de março de 2012
Manhãs no Aterro
Entre pedaladas, vou rezando: Senhor Deus, que eu nunca me acostume. Não permita que eu algum dia feche os olhos para a beleza das manhãs, para o brilho dourado dos trinta e cinco graus às 8h30 incidindo sobre a àgua turva da Guanabara. Não permita jamais que eu me acostume ao ponto de ignorar a natura, que é a mesma coisa que esquecer de Deus, que é a mesma coisa que não pensar no amor.
Sempre que preciso for, que a beleza ofusque meus olhos cheios de sono, aperte meus pulmões asmáticos, seque minha boca de ressaca, incomode-me, provoque-me. Que o destino mostre-se irritado com a minha distração crônica e irremediável e apresente uma amêndoa no caminho do chão e faça com que eu passando sobre ela quase desvie, quase caia. E fique esperta! E que ficando esperta repare na corrida do comboio dos meninos da Força Aérea do Brasil - Ah! os meninos da aeronáutica nas manhãs do aterro! - descamisados e cantantes, saltitantes meninos bronzeados, morenos, loiros, machos, viados. Lindos! Espetáculo comparável somente às partidas de "altinha" de fim de tarde no posto 9 de Ipanema. Quantas belas coreografias da carne!
Que eu tenha viço ao ponto de responder à algum gracejo só por brincadeira, mas que não seja brincadeira a minha vigilância comigo para que pense sempre na maravilha da natura: é preciso rememorá-la cotidianamente.
Assim como é necessário rememorar cotidianamente também os brasileiríssimos Reidy e Burle Marx, parisiense e paulistano, em ordem do primeiro para o segundo. Pense em seu carinho e engenhosidade em fazer o parque do aterro para os cariocas de nascença ou não. E pense nos vendedores de côco paraibanos (poetas da beira-aterro) com saudades da carne seca de bode, mas ainda assim aqui acorrentados pelo coração, ou pelo que há de movediço no fundo das àguas da Guanabara. E pense nos violões, nas canções e nos casais de namorados - também fenômenos da natura que assim como os meninos de Ipanema, costumam ocorrer com mais frequência no fim de tarde. Lembrar-se-há sempre do fato de que por ali passearão de mãos entrelaçadas, os lábios e vergonhas molhados. Por ali passarão apressados, bebendo a beleza da natura, mas na verdade pensando na hora de chegar em casa e ser a própria natura, multiplicá-la!
Nessas manhãs eu venho acordando. Redescobrindo o prazer, zombando do engarrafamento (que não é natureza nem amor), sentindo cheiro de gente matutina. Olfato limpo pra esta gente perfumada logo cedo. Nessas manhãs no aterro, eu venho acordando entre e para o Corcovado e o Pão de Açúcar, desde a Urca e até a Marina da Glória. E desconfio muito fatal e seriamente, estar apaixonada de cabo a rabo.
Sempre que preciso for, que a beleza ofusque meus olhos cheios de sono, aperte meus pulmões asmáticos, seque minha boca de ressaca, incomode-me, provoque-me. Que o destino mostre-se irritado com a minha distração crônica e irremediável e apresente uma amêndoa no caminho do chão e faça com que eu passando sobre ela quase desvie, quase caia. E fique esperta! E que ficando esperta repare na corrida do comboio dos meninos da Força Aérea do Brasil - Ah! os meninos da aeronáutica nas manhãs do aterro! - descamisados e cantantes, saltitantes meninos bronzeados, morenos, loiros, machos, viados. Lindos! Espetáculo comparável somente às partidas de "altinha" de fim de tarde no posto 9 de Ipanema. Quantas belas coreografias da carne!
Que eu tenha viço ao ponto de responder à algum gracejo só por brincadeira, mas que não seja brincadeira a minha vigilância comigo para que pense sempre na maravilha da natura: é preciso rememorá-la cotidianamente.
Assim como é necessário rememorar cotidianamente também os brasileiríssimos Reidy e Burle Marx, parisiense e paulistano, em ordem do primeiro para o segundo. Pense em seu carinho e engenhosidade em fazer o parque do aterro para os cariocas de nascença ou não. E pense nos vendedores de côco paraibanos (poetas da beira-aterro) com saudades da carne seca de bode, mas ainda assim aqui acorrentados pelo coração, ou pelo que há de movediço no fundo das àguas da Guanabara. E pense nos violões, nas canções e nos casais de namorados - também fenômenos da natura que assim como os meninos de Ipanema, costumam ocorrer com mais frequência no fim de tarde. Lembrar-se-há sempre do fato de que por ali passearão de mãos entrelaçadas, os lábios e vergonhas molhados. Por ali passarão apressados, bebendo a beleza da natura, mas na verdade pensando na hora de chegar em casa e ser a própria natura, multiplicá-la!
Nessas manhãs eu venho acordando. Redescobrindo o prazer, zombando do engarrafamento (que não é natureza nem amor), sentindo cheiro de gente matutina. Olfato limpo pra esta gente perfumada logo cedo. Nessas manhãs no aterro, eu venho acordando entre e para o Corcovado e o Pão de Açúcar, desde a Urca e até a Marina da Glória. E desconfio muito fatal e seriamente, estar apaixonada de cabo a rabo.
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