Sentia sim um enorme vazio, um frio seco e persistente, mas que sabia que teria de enfrentar. Momentos como estes são sempre assim. Há de se contrair os músculos, de se secar a boca, de se agüentar firme com olhos atentos, vencendo o sono e o cansaço, vencendo a descrença e a preguiça, vencendo o tempo que passa devagar, vencendo assim a si mesmo, a todo o seu corpo que diz insistentemente: - “cai, desiste, vai embora!”. Ainda assim contrariar a si mesmo, calcado numa razão qualquer, numa suposta certeza de qualquer coisa, mas sim uma certeza de que ainda é necessário estar vivo, atento, forte é necessário segurar firme as pernas que teimam em bambear.
Eu sabia que aquele homem não era um criminoso. Eu sabia, porque no exato instante olhei fundo em seus olhos, eu vi sua decência cambalear - mas se vi foi porque havia uma - eu vi o medo, eu vi seus filhos e acreditei que não havia telefone residencial ou referência que se pudesse dar. Eu vi, era metalúrgico, tinha um salário de merda, uma aposentadoria próxima de merda, e não havia nem jamais estado naquela situação tão tensa, tão complicada antes, para que pudesse ter tido mais calma. Era um cidadão qualquer, tinha sim tomado umas cervejas, talvez muitas, antes de bater seu carro financiado, sem intenção certamente. Mas aquilo não poderia ser argumento, motivo para tamanha desgraça, ser preso, ser humilhado, ser mais um preto jogado ao fundo de uma cela por nada? Afinal era fim de semana, sexta ou sábado, talvez domingo ou segunda-feira cedo e quem seria o bom cristão que não estaria ao menos um pouco embriagado, se não fosse da cerveja barata ou da aguardente de cana, estaria embriagado do Fantástico, daquele glutão idiota do Faustão, falando absurdos, cagando na cabeça do povo, isto também haveria de embriagar a qualquer um, que desconcertado poderia mesmo ter saído depois de uma reportagem esdrúxula daquelas e dar de cara num poste, num carro ou num caminhão, e ninguém viria fazer o bafômetro, ninguém viria e lhe questionaria sobre quantos comerciais estúpidos de carros importados que ele jamais compraria ou quantas propagandas de empréstimos milagrosos vira antes de sair de casa.
Foi por isso que cambaleou, mas teve firmeza de prosseguir. Continuou a fitar os olhos daquele policial, das moças, dos rapazes que se aproximavam para ajudar. Buscou no fundo de si uma voz que não havia, para responder à pergunta. Conseguiu dizer apenas que a viatura era para si, e que iriam lhe prender. Não deve Eritrécio ter sentido meus olhos cheios de água, ou meu coração que rezava pedindo justiça, pedindo socorro por aquele homem, sincero e justo, quase velho, honesto, negro e assustado. Apenas um cidadão que fez algo errado, sem querer. Um irmão.
Olhou mais uma vez os olhos do policial que insistia em manter-lhe ali em sua frente apenas por um sadismo característico de muitos homens e mulheres da lei. Eram cinco e meia da manhã. Minhas pernas também bambearam. A sorte, contudo, é algo que também se cultiva. Não tivesse sido tão firme e tenso, não tivesse tido olhos tão ousados e afirmado sua condição demasiado humana, não lhe teriam respeitado. Não tivesse aproveitado tanto aquela festa, aquela noite fora de casa, aquela prosa com os velhos comparsas de praça, aquelas mulheres, aquela aguardente, não teria tido bravura. Não tivesse se sentido tão grande naquela noite, tão negro, tão homem, tão pobre, não teria tido a certeza de que merecia ser assim tão livre como parecia. Ao sair da delegacia ainda cambaleava, mas tive a impressão de ver um sorriso florir do canto de sua boca, ao desejar à alguém que passou um bom dia – que já despontava às seis da manhã – e um “tudo de bom”.
Pegou seu carro batido e foi embora rasteiro, mas com a certeza de quem em seu coração carrega o certo. Foi verdadeiro. Foi humano. Foi um santo brasileiro.