sexta-feira, 6 de junho de 2014

Tico

( Para Rubem Braga, com amor)

A primeira vez que vi a morte de perto foi com o Tico.
Tico foi o nome que meu irmão e eu demos a um filhote de pardal que caiu do ninho no quintal, Tico de tão pequenino que era. Minha mãe o achou antes que o cachorro achasse e levou para dentro de casa para cuidarmos. “Não fiquem muito apegados, não sei se ele sobrevive” - avisou. Mas já era tarde demais. O Tico ainda não tinha penas e seus olhinhos pretos continuavam fechados, tão pouco tempo tinha fora da casca. Mas piava. Era pequeno e mole, certamente um milagre estar vivo, mas amoleceu meu coração de criança no exato momento em que o vi, tão absolutamente indefeso, tão mais indefeso que eu. Tornei-me logo responsável por sua alimentação e cuidado, como boa irmã mais velha que sempre fui.
Foram dias de muita torcida e dedicação. Mamãe fazia uma papa de fubá com água e eu alimentava periodicamente o Tico com a pontinha de um palito Gina, aos pequenos bocados, com amor e paciência. Ficava ansiosa até voltar da escola e olhar a caixinha onde ele estava, forrada com pano macio e ao abrigo do sol e chuva. Se ele estava quieto, dava um leve toque na beirada, torcendo para que estivesse só dormindo, ao que ele respondia com um fraco pio, que enchia meu coração de esperança novamente.
Eu amei o Tico. Nunca desejei tanto algo na minha curta vida até então, como desejei que seus olhinhos abrissem, que o pio ficasse forte, que as peninhas despontassem e que eu o visse, tempos depois, voar. Sonhava em vê-lo voar. Preocupava-me o fato de não saber exatamente como ensiná-lo, afinal geralmente isto é tarefa das mães-pardal, que instintiva e carinhosamente empurram os filhotes do ninho na hora certa do tempo da natureza, para a primeira decolagem atrapalhada, mas que sempre dá certo. Para mim não importava. Tivesse eu mesma que aprender a voar, ensinaria o Tico tão logo ele ficasse forte e o libertaria, mesmo sofrendo a sua já anunciada ausência.
Aconteceu dias depois, não lembro quantos. Cheguei em casa da escola e o Tico não estava dormindo. Toquei a caixinha com lágrimas nos olhos e murmurei: Acorda Tiquinho da mamãe, acorda! Mas ele não respondeu. Meu passarinho tinha morrido e com ele toda a esperança de uma menina sonhadora brincando pela primeira vez o jogo eterno e triste de despistar a morte. Não Tico, não! – gritei alto e caí num choro compulsivo, que neste exato momento, mais de vinte anos depois, ainda vaza de meus olhos ao lembrar da sensação do corpinho gelado e duro que retirei da caixinha forrada e coloquei numa caixa de fósforos para velar na mesa da sala, com flores e vela acesa por toda a tarde, sem conseguir parar de chorar. Eu nunca tinha ido a um enterro. Eu apenas fiz aquilo sem entender o que fazia, imbuída de uma descomunal coragem que me assolou naquele momento de perda e uma imensa vontade de ficar mais um pouco com ele, o filhotinho que uma péssima mãe deixara cair do ninho, mas que no fim tinha me dado dias de profundo amor e carinho, como antes não sabia poder sentir.
Quando a tarde terminou e minha mãe já estava brava com meu chororô, fiz a fúnebre caminhada até o quintal e enterrei o Tico debaixo do pé de limão galego, com uma cruzinha de madeira em cima. Na minha imaginação, ele ficaria ali por perto sempre depois que virasse espírito de passarinho, num galho daquela amada árvore, piando de vez em quando e talvez até se lembrando de mim, sua amiga mãezinha de oito anos de idade, mas a quem tanto ensinou. Acho que neste exato dia eu comecei a amadurecer e entender o que era a vida.
Hoje sentada na varanda, vi um Tuim entrar pelo vão da tela e se aproximar muito de mim, sem medo ou cerimônia... Na verdade verdadeira, o Tuim sorriu para mim e no coração daquela menina que mora no meu peito, achei que era o Tico vindo me dar bom dia e anunciando de algum modo que, embora a morte sempre vença a partida, não há porque não brincar e aproveitar esta linda aventura de viver e desviver. Esta grande aventura de aprender a amar.
Afinal, – sabe-se lá? – talvez morrer seja somente a chance de finalmente aprender a voar.