Observei atenta cada passo, cada gesto da crooner enquanto ela adentrava, delicada, o minúsculo recinto. Buscando apoios para os pés e mãos, concentrada, meio aérea, mas de modo algum alheia aos que lhe aguardavam: alguns bons amigos e um ou outro visitante por si desconhecido,como eu. Observei atenta cada coisa de diva. Os olhos mareados, duas doses de whisky no camarim, vestido preto em veludo, bolero bordado com finas e brilhantes lantejoulas. Delineador, pouco batom e como único adorno uma ônix circular caindo sobre o colo ainda belo e cheio. Não sei se em seu colo carregou criança, se amamentou. A ônix como símbolo dela mesma: sua negritude, sua solidez, seu brilho eterno de pedra preciosa. Seus setenta e oito anos de Brasil.
Minha ansiedade em ouvi-la ali tão de perto desencadeou numa crise asmática e o ar que me faltava veio também dela quando abriu a boca e a plenos pulmões entoou Estrada Branca. O ar veio dela, de seu timbre rouco, porque tudo o que havia em sua voz era generosidade e entrega. Ela abriu a boca e cantou. Cantou sentido, como cantam os pássaros noturnos de saudade da mata, como cantam as crianças suas primeiras cantigas de roda. Ouvi atenta cada acorde da compositora, parceira do inigualável Vinícius de Moraes, um Vinícius tão amigo, assim, Amigo Amado, como tantos outros que se foram no passo do tempo, no andamento das horas da vida que se espalha e desdobra em canção. Da vida e do amor que se revelam em Tom Jobim antes mesmo de nascermos e se findam na voz torta e improvável de Alaíde, felizmente, antes que nós e a nossa coisa mais bonita, morramos.
Foi embriagador como estar hoje de volta a uma onírica década, quando havia charme, elegância e sinceridade na voz dos artistas. Quando lhes confiávamos nossa história de amor mais secreta, ainda que escancarada no palco. Quando havia verdade e generosidade. Tudo aquilo que se gerou e fez marear os olhos e o coração do compositor – haverá ainda? Mesmo que a duras penas, numa casa pequena, para um grupo de conhecidos que apenas sonham juntos, haverá ainda? Se meu coração inundou-se de amor e estou viva?
A canção responde sim. Alaíde responde, sim!
Resta a nós envelhecermos aos poucos, suficientemente devagar para podermos degustar a textura de nosso tempo, o doce e o amargo do que houver. E assim como a grande Alaíde Costa, estarmos aí pro que der e vier, porque a arte é isso mesmo, camaradinhas. Um baú misterioso de alegrias e tristezas, de descontinuidades feitas de apenas uma coisa chamada gente, nem boa nem má.
Gente que se doa e vira beleza.